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> O Manto de Buda

Palestra (transcrita) de Tanto Meiya Wender

Traduzido por Matheus Fernando Rietter Quintino Ferreira. Revisado por Mui Leticia Rothen Sato. Zendo Curitiba, 2021.

Hoje eu gostaria de falar sobre um aspecto de nossa vida diária aqui – o manto de Buda ou okesa como é chamado em japonês, ou kashaya em sânscrito. Eu quero expressar a minha apreciação pelo manto e a gratidão por ser capaz de vesti-lo.

Recentemente eu andei pensando em quão importante é expressar nossa gratidão e apreciação a nossos pais por termos nascido. Nenhum de nós tinha de estar aqui; isso aconteceu devido a várias causas e condições, incluindo a vontade de nossos pais de ter uma criança. É maravilhoso perceber e expressar tal gratidão. Eu sinto de forma semelhante em relação a okesa. Ter recebido este manto para usá-lo, recebendo-o, e vesti-lo é também como ter nascido. Receber o manto é entrar em uma nova vida, para receber o apoio do professor e da comunidade para clarificar e mergulhar fundo na sua própria vida.

Toda manhã aqui na Green Gulch nós colocamos o manto em nossas cabeças e recitamos:

Vasto é o manto da libertação

Sem forma é o campo de benefícios

Uso os ensinamentos do Tathagata

Para salvar todos os seres.

É algo que fazemos aqui todos os dias, então para nós é bem comum e na verdade nós não falamos muito sobre isso. Mas eu me pergunto se parece algo estranho para se fazer. Pegar este pedaço de roupa, colocar sobre sua cabeça e,  juntando palma com palma, recitar um verso de respeito. Isso parece algo estranho? [“Sim,” do público]. Ok, bom, escutamos isso por aí. Então este é um lugar onde fazemos coisas estranhas.

Obviamente, todo o resto que você tentou na sua vida não deu certo de verdade. [risadas] Caso contrário, por que você estaria aqui? Digo, tem outras coisas que você poderia estar fazendo em um domingo de manhã. Então somos muito felizes que temos esta prática que é transmitida há alguns milhares de anos para nós em que podemos nos apoiar. Nós temos esta coisa muito incomum que fazemos e nós podemos ter fé nela, no poder dela, mesmo que não saibamos exatamente como funciona, nós meio que entendemos, existe algo lá.

Primeiro você coloca o manto sobre sua cabeça e então você o veste e assim que o faz, você precisa cuidar dele. Então ele cuida de você, mas você também tem que cuidar dele, porque tende a cair, mesmo que tenha algumas amarras para ajudar. Mas não é algo como uma alça ou uma camiseta ou algo que você pode simplesmente vestir e esquecer que existe. Você tem que cuidar dele. A forma como veste é parte da transformação – você se move diferentemente quando veste um manto. Você deve tratá-lo de uma forma que ele não fique sujo e só pode vesti-lo em certas ocasiões, mas não em outras e assim vai.

O manto tem sido transmitido por 2000 anos, desde o tempo de Buda. Dogen Zenji, em “O Mérito da Okesa”, diz que quando Shakyamuni Buda transmitiu o Darma para seu sucessor, Mahakasyapa, lhe deu uma okesa que havia sido transmitida de Kasyapa Buda. Ele coloca a origem do manto não apenas com o Shakyamuni Buda histórico, mas com um antigo Buda mitológico fora do domínio da história.

Este texto de Mestre Dogen é uma combinação de instruções muito práticas – que tipo de tecido usar e como lavar a okesa e qual cor ela deve ter – junto de afirmações como a de que a primeira okesa veio deste Buda trans-histórico, de como ela foi transmitida para cada ancestral, por todo um caminho até chegar a nós. Você deve ter visto a linhagem que está na parede do ‘Corredor da Nuvem’ de todos os nossos ancestrais. Todos eles vestiram este manto e passaram adiante. Isso expressa o entendimento dos ensinamentos de Buda sendo passado de geração a geração pelos Budas vivos.

As instruções que Mestre Dogen dá neste texto são sobre o manto e a cor do manto, mas também são instruções sobre como praticar, como viver nossas vidas. Não apenas sobre como fazer algo de tecido, mas como, ao usá-lo, nós na verdade criamos nossas vidas e prática com os preceitos. Por exemplo, ele traz a pergunta de como alguém lida com a raiva e cita um sutra sobre ficar com raiva ao ver alguém que age de forma pura, mas fala de forma impura ou alguém que age de forma impura, mas fala puramente. Vendo isto, surge a raiva. De acordo com o sutra, o jeito de dissipar a raiva é seguir o exemplo do monge da floresta que coleta trapos descartados para fazer um manto. Ele diz, “Assim como o monge, se ele encontra tecido sujo com excrementos, urina, muco nasal ou qualquer outra coisa impura, ele deve pegar com sua mão esquerda e esticá-lo com a mão direita, arrancando fora as partes sujas e esburacadas.” Isto vem do costume de usar peças de roupas descartadas ou rejeitadas para costurar um manto. Ele está descrevendo como, quando você encontra esta roupa, você deve pegar a parte boa e jogar o resto fora. Quando eu li isto pela primeira vez,  pensei que era uma prática um pouco estranha e não tinha certeza se queria fazê-la. Porém quando eu pensei sobre isso, eu percebi que na verdade funciona. Assim como ao pegar este tecido, mesmo que parte dele esteja uma bagunça e você não queira realmente, há uma parte dele que está perfeitamente boa. Da mesma maneira nossa raiva surge geralmente porque nós temos alguma ideia do porque alguém está fazendo algo e é claro que é muito mais fácil focar no que há de errado com eles do que ver sua virtude. Assim como você pega apenas a parte boa do tecido, na verdade funciona muito bem ver a virtude de alguém e largar o resto; você não precisa pegar.

A okesa é feita de pedaços pequenos e grandes, então mesmo que apenas uma pequena parte do tecido esteja imaculada, ele ainda pode ser usado. Você pode ver apenas uma pequena parte da beleza ou virtude de uma pessoa, mas este pouco já é suficiente; apenas descarte o resto.

Mestre Dogen fala dos diferentes tipos de tecido que são apropriados para serem usados para uma okesa e basicamente é o tecido que foi descartado por algum motivo, como o excremento que o tocou ou se foi mordido por um animal ou parte dele tenha sido queimado ou se foi usado para menstruação ou sujo durante o parto ou deixado em um santuário ou deixado em um cemitério. Estes não são os tipos de tecidos que comumente encontramos nos dias de hoje. Quando foi a última vez que você esteve em um cemitério e encontrou um pedaço de roupa que havia sido usado como mortalha? Quando foi a última vez que você encontrou um pedaço velho de tecido que um oficial da corte tenha descartado quando foi promovido a outro cargo e agora não necessita mais dele? Isso provavelmente não aconteceu nem mesmo no Japão. A parte interessante é que após dar todas essas especificações sobre o tipo de tecido que pode ser usado, Mestre Dogen diz que na verdade o tecido da okesa transcende qualquer uma destas descrições. Não precisa ser puro ou impuro, usado ou novo, algodão ou seda; a okesa não tem nada a ver com qualquer categoria particular. Como exemplo ele conta a história de nosso sexto ancestral, Hui-neng, o qual foi indagado por um monge, “Devíamos entender a okesa que você recebeu no meio da noite no monte Huang-mei como sendo de algodão ou seda, com qual tipo de material deveríamos vê-la?” De acordo com Dogen, Hui-neng respondeu, “Não é nem de algodão e nem de seda.” Não depende do tipo específico de material com que foi feito.

 O terceiro ancestral, Shonawashu, já nasceu vestindo um manto. Enquanto ele era um leigo, seu manto era considerado um vestuário secular, mas quando deixou sua casa, se tornou uma okesa. Também há o caso de uma freira, Sukra, que nasceu com um manto, mas no dia em que conheceu Shakyamuni Buda e saiu de casa, o manto secular que ela tinha desde o nascimento transformou-se instantaneamente em uma okesa.

“Tão claramente”, Mestre Dogen disse, “a okesa está além de seda, do algodão e assim por diante. Além disso, o fato de a virtude do Budadarma poder transformar corpo e mente e todos os darmas é como nesses exemplos. É evidente a verdade de que, quando deixamos nossa casa e recebemos os preceitos, corpo e mente, objeto e sujeito, mudam de uma vez. É apenas porque somos tolos que não sabemos.”

Ambos os exemplos trazem não só o ponto de que o tecido não é importante, mas que o manto em si só é transformador, que quando vestimos o manto, nossa vida muda.

 O manto é frequentemente referido como uma veste religiosa, uma roupa que vai por cima da roupa de verdade. Mas sua origem na Índia é completamente utilitária. A história de Shakyamuni é que ele era conhecido como Gautama, o filho de um líder de um clã. Sua jornada começa quando ele sai de casa pela primeira vez, quando ele deixa sua rica e protegida educação pela primeira vez e vê quatro mensageiros – uma pessoa idosa, uma pessoa doente, um cadáver e então um buscador religioso. Talvez este seja o primeiro exemplo da importância do manto ou do poder transformador da vestimenta. Vendo um mendicante vestindo um manto, Gautama inspirou-se em deixar sua vida caseira e se tornar um monge. Como ele sabia que aquela pessoa era um monge? Ele sabia por causa de sua serenidade e seu comportamento, e também pelo que ele estava vestindo. Eu li isso descrito como sendo um manto branco e em outro lugar como sendo amarelo, então não tenho certeza de como ele era, mas era um manto comum daquele tempo na Índia, de alguém que deixou sua casa e era um mendicante errante.

Na próxima cena desta história, nós vemos Gautama saindo de sua casa em um cavalo e usando suas vestes principescas. Ele adentra a floresta e depois de mandar seu atendente de volta, ele corta seu cabelo. Logo ele cruza com um caçador de cervos e pergunta se pode trocar de roupa com ele. Na maioria das histórias simplesmente conta-se que ele trocou de roupa com este caçador. Em uma outra história que eu li, o caçador está vestido com um manto amarelo de um devoto o qual ele estava usando para enganar animais. Eles pensariam que ele era um monge e não fugiriam dele e então ele poderia matá-los. Então quando Gautama troca de roupa com ele, não apenas ele está conseguindo as roupas que quer mas está fazendo um favor duplo ao caçador. Ele está dando suas próprias roupas, as quais valem muito dinheiro, e também o aliviando de uma existência traiçoeira de enganar animais para matá-los. A primeira renúncia de Gautama de sua vida caseira e entrada no seu caminho é a de cortar seu cabelo e trocar suas roupas. Agora que ele tem as roupas de um monge, pode sair e começar sua busca a qual culmina nele se tornando O Desperto, o Buda.

Esta era uma das formas mais antigas do manto – uma simples vestimenta. Em algumas descrições, havia um conjunto de três pedaços retangulares de roupa, os quais eram amarrados em volta do corpo por modéstia e para alguma proteção. Basicamente todos usavam a mesma coisa. Eventualmente havia um pedido de um chefe local, um seguidor leigo de Buda, que seus monges tivessem um tipo diferente de vestimenta. Ele queria saber quem eles eram para poder expressar seu respeito por eles. É interessante que a ideia de uma vestimenta especificamente budista venha de um leigo. Esta questão é algo que ainda está conosco, se um monge deve ser diferente ou igual a todos. Deveriam eles se misturar ou deveriam ter uma aparência diferente, deveriam ser distintos de alguma maneira? Então se eu tenho que raspar a minha cabeça e usar roupas diferentes, eu sou diferente dos outros e me sinto separado. Mas nesta história, a separação é o que possibilita haver contato. Eu não sei como vocês se sentem em relação a isso. Eu sei que é algo que surge para muitas pessoas que vestem mantos. Alguns monges de Green Gulch dizem, “Se vou para Mill Valey vestido como monge, então eu estou separado de todo mundo. Se eu for para o colégio de meus filhos com a cabeça raspada, então as crianças irão tratar o meu filho como alguém que tem pais esquisitos.” Então este é o tipo de questão que surge por um bom tempo. Mas eu acho interessante que nessa primeira história, a idéia de existir uma distinção nos mantos era para que leigos soubessem quem eram os monges, quem eram os seguidores de Buda e poderiam efetivamente se juntar a eles, homenageá-los.

A lenda sobre o design do manto é que Buda notou um campo de arroz e perguntou para Ananda, um de seus principais aprendizes, se ele poderia projetar um manto baseado nesta forma. Arroz era uma das fontes mais básicas de sustento na Índia, então o padrão em que era cultivado aparenta ser um modelo apropriado para a vestimenta daqueles que dedicaram suas vidas ao despertar. Campos de arroz são feitos tanto de áreas pequenas quanto de áreas grandes, divididos em seções com passarelas no meio. O manto é feito de retângulos de tecido pequenos e grandes unidos por pequenas tiras. Quando monges procuravam por trapos para costurar, se encontrassem um pedaço grande, poderiam usar esse pedaço grande; se encontrassem um pedaço pequeno, poderiam usar esse pedaço pequeno. O manto é feito de ambos os tamanhos. Em alguns casos o pedaço maior está acima e em alguns casos o pedaço grande está abaixo. Não há distinção, não há melhor ou pior, ou mais importante ou menos importante. O pedaço curto é simplesmente curto; o pedaço pequeno é simplesmente pequeno.

Um professor descreveu o padrão da sobreposição – cada seção se sobrepõe a que está abaixo dela – como uma corrente de água em uma plantaçao de arroz, os ensinamento fluem e nutrem a intenção e os votos do praticante. Não sei se esse era o entendimento original ou se foi assim interpretado mais tarde, mas cada elemento do manto esta conectado com alguma parte do ensinamento desta maneira.

Conforme o budismo se espalhou da Índia para outros países e o ensino mudou e se desenvolveu, o manto se transformou e foi a outros países. Hoje a cor é diferente em diferentes países. No sul da Ásia, mantos são dourados ou amarelos, no Tibet eles são geralmente marrons. Na China, o clima é muito mais frio que na Índia. Então a maior mudança é que se tornou algo que era vestido por cima das roupas comuns, ao invés de ser a própria roupa. Havia maior ênfase em ver o okesa não como uma roupa, mas como o portador dos ensinamentos, como o corpo e a mente de Buda, o símbolo da transmissão. Talvez a história mais famosa seja a do sexto ancestral Hui-neng que, mesmo sendo leigo na época, recebeu a transmissão do darma de seu professor e recebeu o manto e a tigela como um símbolo da transmissão dos ensinamentos. Quando ele deixou o monastério, outros monges o perseguiram, zangados que ele, um novato, tenha recebido a herança de seu professor. Eles tentaram roubar o manto e a tigela, mas não conseguiram. Hui-neng colocou o manto sob uma pedra e o monge que o perseguiu não conseguiu levantá-la. Devido a esse evento inexplicável, o monge finalmente entendeu, e expressou gratidão a Hui-neng como seu professor. Nesta história o próprio poder de Hui-neng é projetado no manto. Isso mostra que os ensinamentos não estão disponíveis até que você os compreenda verdadeiramente, até que eles verdadeiramente sejam seus. Eles podem ser dados mas não podem ser retirados.

            O ensinamento do manto veio originalmente para o Japão com monges que trouxeram o budismo pela primeira vez. Dogen fala sobre ter visto a okesa; ela já estava no Japão desde o século XIII. Mas uma passagem famosa desta leitura, Kesa Kudoku, diz que quando ele foi à China, ele viu monges no Zendo colocando a okesa sobre suas cabeças e recitando o verso do manto. Ele disse que esta prática foi perdida no Japão, e ele era tão grato ao ver como era feito que chorou. Ele trouxe o ensinamento consigo para o Japão, mas de novo, após a era de Dogen, em certa medida, alguns ensinamentos sobre o manto foram perdidos.

Nós não sabemos nem mesmo como era o manto de Mestre Dogen. Há um templo no Japão que tem um suposto manto de Mestre Dogen, mas a maioria dos estudiosos não acredita que seja de fato o manto original. Há uma pintura de Dogen Zenji vestindo um manto que dá ao menos uma ideia precisa da crença das pessoas na época em que foi pintado a respeito de como o manto se pareceria. Mas nós não sabemos com certeza o que as pessoas vestiam no século XIII. Acredita-se que provavelmente era um preto azulado, o que é incomum no mundo Budista. O Japão talvez seja um dos únicos países em que os monges usam muito preto, e isso se deve ao fato que muito tecido preto estava disponível. Sumi (carvão) era usado para tingir e uma certa vez um samurai usou preto como roupa de luto, então havia muito tecido preto disponível.  Eu acredito que as pessoas utilizavam qualquer tinta que possuíssem. As tintas disponíveis no Japão devem ter sido diferentes das tintas naturais, as raízes e plantas que cresceriam na Índia. Nós não sabemos se a okesa de Mestre Dogen tinha ou não uma argola. Minha okesa tem um nó, mas acredita-se que havia um tempo que uma argola era usada junto do nó para unir a okesa. Hoje algumas okesas usam uma argola desse tipo e também é frequente ver uma argola no rakusu, a versão pequena da okesa.

Nós não sabemos ao certo a origem do rakusu. O que eu soube é que na época de Mestre Dogen, havia um manto de cinco tiras que era do tamanho da okesa, e gradualmente ele diminuiu. Mestre Dogen transmitiu aos seus discípulos os dezesseis preceitos do Bodhisattva; ele não transmitiu os preceitos do Vinaya longo que continham proibições em relação ao trabalho. Então, a partir da época de Mestre Dogen, havia menos restrições sobre os monges e eles gradualmente se envolviam mais em trabalhos braçais que antigamente. Na Índia, monges eram proscritos do trabalho, especialmente trabalhos com a lavoura, então eles não precisariam de um manto menor. Mas gradualmente após a época de Mestre Dogen, com os monges mais envolvidos em trabalho braçal, eles precisavam de um manto menor e informal. Então a okesa se tornou uma versão menor que poderia ser vestida em ocasiões menos formais. Esta é uma das teorias sobre a origem do rakusu.

Parece que após a época de Mestre Dogen os ensinamentos sobre a okesa até certo ponto se extinguiram. Então no período Edo houve um ressurgimento do interesse e a pergunta surgiu, “Qual é a okesa verdadeira? Qual a verdadeira okesa que foi transmitida por Buda?” Alguns estudiosos, particularmente um padre Shingon chamado Jiun Sonja, pesquisou em textos antigos e trouxe alguma ideia de como se pensava que a vestimenta pareceria. Então, mais recentemente, neste século, Kishizawa Ian Roshi, Hashimoto Eko Roshi, e Sawaki Kodo Roshi, voltaram para sua velha pesquisa e reviveram a prática de costura da okesa. Foi muito interessante para mim descobrir isso porque tendo iniciado minha prática do Zen aqui no Zen Center, onde os ensinamentos da costura estavam prontamente disponíveis, eu assumi que todos os estudantes Zen costuravam o manto de Buda. Mas descobri que não era esse o caso. No Japão hoje há duas versões dos mantos do Soto Zen; há uma versão comprada em lojas, que é o manto oficial como descrito pelo regulamento Soto Shu e há um costurado à mão – chamado Nyoho-e – que foi projetado bem diferente. Na maioria dos templos de prática no Japão este tipo de manto não é oferecido para os monges em treinamento. Monges em treinamento devem usar o manto comprado em lojas pois o Nyoho-e é considerado muito especial, muito diferente e muito extravagante.

Até onde eu sei, quando Suzuki Roshi veio pela primeira vez aos Estados Unidos, ele vestiu a versão oficial da okesa. Eu não sei se ele tinha um manto próprio feito à mão naquele tempo. Ele não iniciou imediatamente a prática de costurar no Zen Center; não foi a primeira coisa que ele ensinou. Talvez ele estivesse um pouco hesitante em trazer isso como uma prática.

Foi no final de sua vida que Suzuki Roshi realmente decidiu introduzir a prática da costura em sua comunidade. Quando fez isso, apoiou a prática completamente e convidou Eshun Yoshida Roshi, uma monja Japonesa, uma mulher que sabia costurar e havia estudado com Hashimoto Roshi e Sawaki Kodo Roshi. Suzuki Roshi não os conhecia pessoalmente. Ele disse que havia encontrado Hashimoto Roshi apenas uma vez, mas se sentiu conectado a ele pois ele havia sido amigo do professor de Suzuki Roshi, Kishizawa Ian Roshi e seu mestre Gyokujun Soun Roshi. Yoshida Roshi veio e realizou um sesshin de costura da okesa no City Center em junho de 1971, e naquele tempo Suzuki Roshi deu alguns sermões sobre a okesa.

Em uma dessas conversas ele disse, “De algum modo sua prática é muito luxuosa. Vocês são crianças que nasceram em uma família rica. O que quer que você queira fazer, você consegue fazê-lo. Então talvez esta seja a razão pela qual eu não apoiei tanto a costura da okesa na prática antes – é uma prática muito luxuosa. No período Heian no Japão apenas pessoas que nasciam em famílias nobres poderiam fazê-lo. Budistas estavam perdidos nas suas práticas, porque era uma prática muito aristocrática. Apesar de coletar material antigo e passar muito tempo em cada ponto, quando faziam um ponto eles reverenciavam muitas vezes,  pegavam a agulha e costuravam a okesa ponto a ponto dessa forma. Era uma boa prática, eles pensavam, mas por causa disso, Budistas eram perdidos. Isso ainda é um problema para nós. Eu acho que costurar um rakusu ou okesa apenas para si mesmo é muito luxuoso, muito aristocrático. Nós devemos entender costurar como ‘estudar a si mesmo.’ Estudar a si mesmo para renunciar a si mesmo e despertar com e para o benefício de todos os seres.” Ele também disse, “Nossa okesa não é apenas um símbolo de nossos ensinamentos, mas é na verdade o próprio Darma. O entendimento adequado do zazen é ao mesmo tempo o entendimento adequado do rakusu. Então a não ser que você tenha a experiência real do zazen, rakusu não é o rakusu de verdade; é apenas algo que você veste. Não é o Darma em si.”

Na verdade, o manto de Buda vai além da nossa compreensão. É uma prática maravilhosa costurar e vestir algo que nós não fixamos com nossa mente racional. Enquanto nós acharmos que o zazen deve ser uma forma em particular, nós seremos limitados. Enquanto nós acharmos que devemos ser de uma forma em particular, nós somos limitados. A prática do zazen e a prática de fazer e vestir a okesa são a mesma prática. Suzuki Roshi encorajou seus estudantes a se concentrar em cada nó de costura da okesa da mesma forma que eles se concentravam em seguir sua respiração no zazen. Mas ele disse, “O objetivo não é que você se concentre em cada ponto. O objetivo é que você seja um com cada ponto.”

Nós temos a prática aqui quando costuramos um rakusu ou okesa, de recitar com cada ponto, “Namu kie butsu” ou “Eu me refugio em Buda.” Professora Senior do Darma Blanche Hartman, a pessoa responsável pela maior parte dos ensinamentos e transmissão da prática da costura do manto no Zen Center, me contou que sua prática de tomar refúgio em cada ponto foi transmitida a ela por Yoshida Roshi. Eu não sei se esta prática ainda existe no Japão. Em Zuioji, um dos poucos templos em que os monges costuram a okesa, eles não tomam refúgio em cada ponto, e li que alguns grupos de costura leigos recitam a frase, “Ponto a ponto, costuro com meu coração.” Minha experiência é que nossa prática de tomar refúgio em Buda em cada ponto é muito poderosa. Ela é disponível tanto para monásticos quanto para leigos e pode se estender para toda nossa vida. Eu me pergunto às vezes se Suzuki Roshi não tivesse encorajado esta prática, o que seria de fato nossa prática hoje. Como mais poderíamos costurar a união de nossa sanga? Eu me pergunto se nós sequer teríamos este local de prática hoje se não tivéssemos o manto e a prática de costurá-lo.

Zen não é um ensinamento revelado; é um entendimento que vem de ouvir os ensinamentos, absorvê-los, estudá-los, trabalhar com eles e expressá-los junto de alguém. É a mesma coisa com o manto. Nós não desenhamos ou escolhemos a cor de acordo com nossas preferências, mas aprendemos como fazer com nossos professores, os quais aprenderam de seus professores. E então mesmo depois de horas e horas de costura, o manto não pertence a nós. É o manto de Buda e você o recebe em cerimônia onde você tem a oportunidade de expressar publicamente sua profunda intenção de viver como discípulo de Buda. Eu acho que é essa a fundação da nossa prática aqui.

            Muito obrigado.

Fazenda Green Gulch. Maio 15, 2005

Original em inglês disponível em: Wind Bell. Publication Of San Francisco Zen Center. Vol. 39, No. 2 Fall 2005

Meiya Wender pratica no San Francisco Zen Center desde 1972, foi ordenada Monja em 1986 (recebendo o nome de Noite Luminosa, Prática Original, Meiya Honshu) e recebeu Transmissão do Darma na linhagem de Shunryu Suzuki Roshi de Tenshin Reb Anderson em 2002. Ela também treinou nas formas tradicionais da Soto Zen em Zuioji em Shikoku, Japão. Ela ocupou muitos cargos monásticos no Tassajara Zen Mountain Center e Green Gulch, incluindo diretora, ino (chefe do zendo), tenzo (chefe de cozinha) e tanto (chefe de prática).