Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (10) – Zen no Brasil

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

10 – Zen no Brasil

Para os imigrantes japoneses que vieram para o Brasil, o Zen compreendia as práticas devocionais, o culto aos ancestrais e os rituais funerários, tal como era em seu país de origem. Deste modo, quando a Soto Zen enviou monges (kaikyoshi) para o exterior, nenhum conflito era esperado, uma vez que eles foram mandados a fim de continuar o sistema do templo familiar e atender a comunidade japonesa em nosso país.

Além deste cenário, aqui também encontraram, porém, o Zen chegado via intelectuais não japoneses que se interessaram por ele por meio da literatura europeia e americana, desde o final do século XIX. Por conta disso, estes monges missionários conheceram, entre não-descendentes de japoneses,  uma demanda pelo Zen monástico e pelo zazen – o que, ao longo do tempo, foi se configurando como um conflito em relação à autenticidade das práticas Zen[1].

Desde 1955 até os anos 2000, a Soto Shu enviou um total de 13 missionários ao Brasil. Eles eram, na sua maioria, filhos de monges, recém-formados pela Universidade da Soto Shu em Tóquio. A experiência no exterior, assistindo imigrantes no momento da morte, ministrando rituais funerários e culto aos ancestrais, seria parte da sua formação, que tinha por objetivo máximo herdar o templo de sua família[2].

Entre estes missionários, muitos continuaram suas carreiras dentro da Instituição, uma vez que desenvolveram o que as congregações japonesas esperavam delas. Outros mantiveram sua ligação com a instituição ao aceitar as medidas da Sotoshu e alguns, ainda, não tiveram uma longa carreira dentro da instituição, mas acabaram tendo um papel na expansão do Zen entre brasileiros não-descendentes[3].

Monja Coen Roshi, brasileira, depois de 12 anos no Japão, voltou ao Brasil como missionária da Soto Shu, assumindo a direção do templo sede oficial na América do Sul, o Busshinji, fundado em 1956.

O início de sua prática, no entanto, foi nos Estados Unidos, no Zen Center de Los Angeles, onde teve o primeiro contato com o Zen sob orientação de Maezumi Roshi. Lá praticou também com Charlotte Joko Beck e Genpo Sensei, então alunos de Maezumi Roshi. A identificação com a prática foi imediata e em poucos meses, após alguns workshops e sesshins, decidiu que se tornaria monja. Entretanto, Maezumi Roshi sentia que algo ainda não estava resolvido internamente. Tendo sido criada como católica, ela no fundo se sentia traindo Jesus – algo refletido nos constantes questionamentos de sua mãe sobre a necessidade de seguir uma religião estrangeira, uma vez que ela poderia se tornar uma freira católica. Apenas depois de um bom tempo de prática, a dúvida se esvaiu e finalmente Jesus e Buda se tornaram amigos em seu íntimo. Depois deste insight, tanto sua mãe quanto seu professor abençoaram sua escolha e em 14 de janeiro de 1981 foi ordenada monja[4].

Conta ela:

“Meses depois, tive uma entrevista individual com ele [Maezumi Roshi]. Me parecia um ser enorme, um homem grande. Na verdade, era mais baixo do que eu. Pensei estar na presença de um dragão celestial. Suas vestes eram verdes/azuis. Ele era imenso. Mais tarde, pedi para ser freira. Ele me disse que não havia freiras ali, apenas monges e monjas. “Então quero ser monja”, falei. “Vamos ver”, respondeu. Quem quisesse ser monge ou monja passava um ano como seu assistente pessoal. Assim fui convocada. Acordava antes de todos na casa. Preparava o chá do mestre, o suco da esposa, a mamadeira do bebê que acabara de nascer. Lavava o arroz, preparava a sopa e o esperava lendo um trecho do Shôbôgenzô (livro de ensinamentos do fundador da nossa ordem). Quando ele descia, ajudava-o a terminar de se vestir, tomávamos o chá juntos.

Eu acendia vários incensos e o seguia. Ele ia colocando incenso em todos os altares do templo: do jardim, da cozinha, da sala dos fundadores e, finalmente, da sala de zazen – que, nessa época, ficava lotada às 5h20 da manhã. Percorria a sala de ponta a ponta antes de se sentar. Recebia todas as pessoas que o solicitavam, fazia entrevistas individuais, dava palestras, lia, transmitia os ensinamentos aos seus discípulos mais antigos. Vi mestres fundadores sendo treinados. Sou antiga. Tenho mais de 30 anos nesta estrada. Alguns já morreram, se foram. Eu continuo levando a luz que me foi confiada”[5].

Em outubro do mesmo ano, Monja Coen Roshi já estava no Mosteiro Feminino de Nagoya[6], para o treinamento monástico conduzido por Shundo Ayoama Roshi:

“Durante oito anos, fiquei em internato e semi-internato no Mosteiro Feminino de Nagoya. Nossa superiora, Shundo Aoyama Roshi, me recebeu, quando cheguei, no Shoin. Não por eu ser importante, mas por não haver outro local para que eu me trocasse e me preparasse para a entrada oficial no mosteiro. Nesse dia, ela me advertiu:

— No mosteiro, não são todas mestras iluminadas. Somos pessoas que nos disponibilizamos a praticar os ensinamentos de Buda. Como pedras colocadas dentro de um recipiente, a prática diária nos faz esbarrar umas nas outras. Quem ficar arredondada primeiro não será ferida nem machucará ninguém. Seja bem-vinda.

Eu me julgava redonda e macia. Que ilusão”[7].

Neste período conheceu aquele que viria a ser seu Mestre de Transmissão, Yogo Roshi (Zenguetsu Suigan Daiosho), que a autenticaria como professora dos ensinamentos de Buda. A pedido de Aoyama Shundo Roshi, ele foi o diretor superior responsável pelos ensinamentos e treinamento do Mosteiro feminino de Nagoya; além disso, foi Abade Superior do mosteiro Saijoji  (em Odawara), e Vice-Abade Superior do mosteiro sede de Sojiji (Yokohama). Era um professor muito respeitado e por muitos anos ocupou o cargo de professor dos professores da escola Soto Zen. Destacou-se também na luta pela igualdade de direitos das monjas no Japão.

Disse sobre ele Monja Coen Roshi:

“Durante os anos que se seguiram em Nagoya, nas dificuldades de adaptação, sem conhecer o idioma e os costumes, era sempre a ele que me dirigia. Yogo Roshi vinha ao nosso convento cada dois ou três meses, por períodos de três, cinco, sete dias, a fim de liderar nossos retiros principais. Eu sempre dava um jeito de me esgueirar por entre o elo de proteção que a abadessa e as outras monjas faziam à sua volta e ia perturbá-lo nas horas de descanso, com minhas constantes perguntas, dúvidas e até mesmo reclamações. Ele sempre me atendeu. Falávamos do Shobogenzo de Mestre Dogen, da prática no convento, tomávamos chá juntos, muitas vezes acompanhados pela própria abadessa. Formou-se uma compreensão, entendimento, sutil e profundo, de grande força e delicadeza”[8].

Nos últimos anos de treinamento no Japão, Coen Roshi participou de um programa especial para futuros professores de mosteiros. Assim, graduou-se como monja especial, habilitada a ministrar aulas de Budismo para monges e leigos. Ainda sob a orientação de Aoyama Shundo Docho Roshi, foi a primeira monja líder do Mosteiro. Em 1995, retornou ao Brasil como missionária da tradição Soto Shu, servindo o Templo Busshinji, no bairro da Liberdade, em São Paulo.

Como ela mesma diz, quando voltou ao Brasil se incumbiu da difícil missão de transmitir dois elementos que mais a impressionaram no povo Japonês: kokoro, que significa “coração-mente-essência” e gaman, que significa aguentar, suportar. Ou seja, seu propósito é educar pessoas a ter sensibilidade suficiente para sair de si mesmas, de suas necessidades pessoais e se colocar à serviço e disposição do grupo, das outras pessoas, da natureza ilimitada e educar para ser capaz de suportar dificuldades e superá-las[9].

Ficou no Templo Busshinji por seis anos (até 2001) e durante este período, realizou inúmeras atividades, tanto com descendentes japoneses quanto com não-descendentes. Entretanto, o reconhecimento dentro da comunidade japonesa veio aos poucos, graças ao seu árduo trabalho em preservar os rituais que a comunidade esperava que fossem realizados no templo, o que acabou pesando mais que o fato de ela ser mulher e não japonesa. Na realidade, sua fluência em português e japonês permitiu que ela se tornasse uma intermediária entre a comunidade brasileira e japonesa. Houve grande solicitação por parte dos primeiros imigrantes que ela oficiasse as cerimônias também em português, para que seus netos e netas entendessem sua tradição ancestral[10].

Sua presença atraiu cada vez mais não-descendentes para o templo e a maioria das atividades começou a ser realizada em português. Com o tempo, a tensão entre japoneses, nipo-brasileiros e não-descendentes tomou uma proporção de conflito explicito, que culminou no desligamento de Coen Roshi de seu posto no templo, mas não da Soto Shu. Estes conflitos revelaram um pouco das dificuldades na negociação de qual Zen deveria ser praticado no Busshinji e deixou claro que o que está em jogo em situações deste tipo é a resistência étnica contra a sociedade circundante e a identidade religiosa dos grupos[11]

Assim como outros missionários anteriores que perderam seus postos, Coen Roshi levou consigo seus alunos quando partiu. Diferente dos outros, não fundou um Centro Zen mas sim um Templo (Tenzui Zenji) na cidade de São Paulo, um bom exemplo de como as fronteiras entre o Zen ‘tradicional’ e o Zen ‘ocidental’, moderno, se diluíram – ali brasileiros não-descendentes e nipo-brasileiros (alguns antes católicos) se interessam por rituais “japoneses” (tais como funerais, homenagens aos falecidos, higan e o-bon), pelas práticas de zazen e pelos retiros tradicionais (sesshins) mas também por práticas como casamentos e Dia de Finados. Além do templo em São Paulo, Coen Roshi tem centros de alunos espalhados pelo Brasil, frequentados por brasileiros descendentes e não-descendentes, cuja prática fundamental é o zazen.

Outros missionários tiveram um papel central na disseminação do Zen entre brasileiros não japoneses. Um deles é Ryōtan Tokuda (1938-). Enviado para o Brasil em 1968, também deixou o Busshinji por conta de uma série de divergências, mas não deixou o Brasil. Começou a trabalhar independentemente com seus discípulos não japoneses e expandiu o Zen para o Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiânia, Brasília e Recife[12]. Em 1976, fundou o primeiro mosteiro Zen na América Latina, o Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu, ES.

Um tempo depois de deixar o Busshinji, teve também de deixar a Soto Shu pois ganhava a vida como profissional de shiatsu, acupuntura e tratamento com remédios alternativos, o que não era bem aceito pela sede da instituição em Tóquio. Entretanto, ele continuou ativo na difusão do Zen, fundou mais de quinze centros e ordenou mais de trinta pessoas[13]. Atualmente mora na França, onde está construindo um mosteiro, e vem anualmente ao Brasil para ministrar cursos de medicina chinesa, participar de retiros e orientar os praticantes de Budismo ligados à Sociedade Soto Zen do Brasil, fundada por ele[14].

Moriyama Roshi (1938-2011), por sua vez, depois de substituir Shunryu Suzuki em São Francisco (entre 1970-1973) também veio para o Busshinji e acabou tendo o mesmo problema que Suzuki Roshi. A congregação japonesa não estava feliz com sua preferência pelas práticas monásticas do Zen e pelos brasileiros não-descendentes e pressionaram a Soto Shu para demiti-lo. Foi deposto em 1995 e levou seus alunos não-descendentes, estabelecendo três novos grupos Zen: um na cidade de São Paulo, outro em Campinas e um terceiro em Porto Alegre. Ali morou entre 2000 e 2005, quando recebeu por doação cinco hectares de terras em Viamão. Batizou este local de Vila Zen (ligado ao grupo Via Zen), já com a intenção de montar um centro de prática intensiva. Quando retornou definitivamente ao Japão, sugeriu que a comunidade do Via Zen procurasse a orientação espiritual de Monja Coen Roshi. Desde então, ela vem fornecendo as diretrizes e acompanhando todas as etapas de desenvolvimento do Via Zen e Vila Zen[15].

Cada um destes missionários (e muitos outros não citados aqui), deram origem a uma grande rede de praticantes espalhados pelo país, cada qual vivendo suas próprias experiências de adaptar o Zen ao “caldo de cultura” brasileiro. 

Não diferente do que aconteceu nos Estados Unidos, talvez um desafio no Brasil seja superar uma visão mais individualista do Zen, uma vez que muitos dos que o buscam o veem como uma alternativa pessoal a suas religiões de origem. Como afirma a antropóloga Cristina Rocha, é uma característica das pessoas das sociedades urbanas modernas evitar a ideia de uma instituição religiosa, organizada em uma hierarquia e com dogmas para instruir as pessoas sobre como se comportar e em que acreditar. Em suas pesquisas com praticantes do Zen no Brasil, para todos os seus entrevistados, o sagrado era construído por eles mesmos, em uma espécie de bricolagem dos “melhores” (para eles) atributos de diferentes religiões. Sendo assim, a prática central do Zen Budismo, o zazen, é visto como uma prática individual e a iluminação (satori), sua consequência, é tomada como resultado do esforço individual. Neste sentido,  o Zen Budismo é escolhido por ser, em sua visão, uma religião simples, sem dogmas e conectado à vida cotidiana dos praticantes[16].

Mas, como afirma Monja Coen,

“O Budismo japonês é contrário à individualidade, só existe prática no coletivo. A convivência é o que forma o monge. Fazer prática sozinha em uma caverna é impensável, não é considerada formação monástica. O comum é a vida em grupo, a experiência de relacionar-se entre seres humanos. Ver quem fica mais redondo, macio, sem pontas, sem brigar, sem se impor”[17].

Ou ainda, como diz Monja Heishin Sensei, discípula de Coen Roshi:“Um dos princípios fundamentais do Budismo é o de que estamos interconectados com todas as coisas, em infinitas causas e condições; não há separação. Buda teve essa experiência, não foi um pensamento racional. Depois, ele traduziu aquilo em uma linguagem, mas, primeiro, ele teve uma experiência profunda na qual foi árvore, foi lua, foi terra, foi vegetal, foi ar, foi animal, foi ser humano, tudo ao mesmo tempo. E daí vem a ética do cuidado, pois tudo o que se faz está interconectado com o resto. Por isso nossa ação budista é responsável, engajada, porque tudo o que fazemos, pensamos ou falamos tem que ser pensando no cuidado com a vida na Terra. O tripé do Budismo em nossa ordem, a Soto Zen, é justamente: direitos humanos, meio ambiente e cultura de paz”.


[1] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[2] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[3] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[4] COEN, Monja. Big Revolution. Entrevista. Disponível em: https://www.monjacoen.com.br/textos/entrevistas/422-big-revolution

[5] COEN, Monja. A sabedoria da transformação: reflexões e experiências / Monja Coen. – 1 ed. São Paulo: Planeta, 2014.

[6] Só no começo deste século que monjas tiveram um mosteiro especial para mulheres definido no começo deste século. Foram quatro monjas que uniram seus esforços e conseguiram fundar o convento de Nagoya. Outras fundaram em Niigata e em Toyama, mas o de Nagoya foi sempre o mais procurado (COEN, Monja. Zenguetsu Suigan Daiosho. Disponível em:  https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-da-monja-coen/148-zenguetsu-suigan-daiosho).  

[7] COEN, Monja.  108 contos e parábolas orientais. 1. ed. – São Paulo : Planeta, 2015.

[8] COEN, Monja. Zenguetsu Suigan Daiosho. Disponível em:  https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-da-monja-coen/148-zenguetsu-suigan-daiosho.

[9] COEN, Monja. Mensagem da Monja Coen sobre o Japão de agora. Disponível em: https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-da-monja-coen/488-mensagem-da-monja-coen-sobre-o-japao-de-agora.

[10] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[11] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[12] ROCHA, Cristina. All Roads Come from Zen. Busshinji as a Reference to Buddhism.

Japanese Journal of Religious Studies 35/1: 81–94. 2008 .

[13] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[14] Ryotan Tokuda Igarashi. Disponível em: http://www.nossacasa.net/shunya/ryotan-tokuda-igarashi/

[15] Vila Zen. Prática ambientalismo vida comunitária.  Disponível em: http://www.viazen.org.br/si/site/0300/p/Vila%20Zen

[16] ROCHA, C. Being Zen-Buddhist in the Land of Catholicism. Revista de Estudos da Religião Nº 1, pp. 57-72, 2001. 

[17] COEN, Monja. A prática é a vida em grupo. Entrevista para a Revista Bodisatva. Disponível em: http://bodisatva.com.br/entrevista-monja-coen/

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).

Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (9) – A Soto Zen pelo mundo

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

9 – A Soto Zen pelo mundo

Além dos missionários japoneses, a apropriação e construção do Zen que ocorreu em vários países ocidentais teve um outro ponto de partida, comum a quase todos: a obra de Daisetsu Teitaro Suzuki e dos estudiosos da Escola de Quioto. Eles consideram que o Zen foi concebido não como uma religião, com seus respectivos rituais e doutrinas, mas como uma experiência espiritual individual que levaria à transcendência. Para eles, o Zen “autêntico” não requeria nenhuma associação a alguma tradição institucional ou qualquer transmissão formal através de linhagens[1].

 Este movimento foi forte nos Estados Unidos nos anos 60, em plena contracultura, quando a geração chamada “beat”, insatisfeita com a cultura materialista e com o cristianismo e judaísmo da época, buscava por disciplinas espirituais genuínas. Além de D. T. Suzuki, que apresentava o Zen em sua forma Rinzai e pouco mencionava o zazen, foram influenciados pela obra de Alan Watts, com um foco na filosofia do Zen e sua proposta de libertação pessoal e ausência de restrições.

A chegada de missionários da Soto Shu a este contexto, carregados de uma prática formal em monastérios, com séculos de desenvolvimento e história, surpreendeu a todos com um Zen de disciplinas e procedimentos estabelecidos[2].

Um destes missionários foi Taizen Maezumi Roshi, fundador do Zen Center de Los Angeles. Provavelmente por saber falar inglês, foi designado pela Soto Zen para viajar aos Estados Unidos e servir como monge aos imigrantes japoneses alocados na Califórnia. Com uma passagem só de ida, chegou em Los Angeles em 1956 com a incumbência de realizar serviços semanais, funerais, memoriais, casamentos e outras cerimônias requeridas pela comunidade. Nesta época não existia um interesse pelo treinamento Zen mais rigoroso, aquele dos monastérios, o que não impedia Maezumi Roshi de continuar seus estudos dos textos de Mestre Dogen, de koans e de praticar zazen. Mais do que isso, ele aprofundou seus estudos a ponto de receber a autorização de ensinar o Zen (transmissão) de três diferentes professores de três diferentes linhagens:  Soto, Rinzai e a linhagem “independente” de Harada-Yasutani Roshi[3].

Seu professor da linhagem Rinzai, Nyogen Senzaki, foi o primeiro a residir nos Estados Unidos e já havia aceitado como alunos vários estudantes europeus e americanos interessados no Zen. Com ele, Maezumi Roshi aprendeu que as práticas Zen poderiam ser do interesse de pessoas advindas de outras matrizes culturais, distantes espacial e temporalmente do Budismo, ideia antes inimaginável[4]

Quando ele chegou aos Estados Unidos, o interesse no Zen entre os poetas e escritores Beat estava na excentricidade dos mestres da era de ouro do Chan chinês, descrita na obra da D. T. Suzuki e não no zazen rigoroso e no estudo de koans. Mesmo assim, Maezumi Roshi mantinha sessões semanais de zazen no templo Zenshuji, em que estava alocado. Em paralelo, o sucesso do livro “Os três pilares do Zen”, fundamentado nos ensinamentos de seu professor Yasutani Roshi começou a atrair a atenção dos jovens americanos não-descendentes de japoneses para uma forma de Zen então desconhecida. Provavelmente tal movimento incomodou aqueles cuja visão mais tradicional das práticas Zen o restringia à comunidade japonesa; por conta disso, Maezumi Roshi levou seu crescente grupo de prática de zazen para outro espaço: o então chamado Los Angeles Zendo, renomeado em seguida como Zen Center de Los Angeles[5].

Outros professores vieram para os Estados Unidos, como o já citado Shunryu Suzuki, fundador do Zen Center de San Francisco e do primeiro monastério Zen americano em Tassajara e Katagiri Roshi, do Minessota Zen Center. Como a prática do zazen no Japão naquela época estava em baixa, estes professores, sabendo do interesse dos estrangeiros, esperavam que este viesse a se tornar um solo fértil para as sementes do Darma de Buda. Muitos deles vieram por conta própria e eram criticados por seus superiores no Japão, que não entendiam o que eles estavam fazendo[6].

A prática que eles ofereciam era aquela com a qual eles eram familiares, ou seja, pautada em valores e formas culturais japonesas. No Zen Center de Los Angeles, por exemplo, a prática era rigorosa e em sua maior parte ortodoxa: procedimentos cerimoniais tradicionais da Soto Zen eram aprendidos, praticados e mantidos. Visitantes e trainees passavam longas horas em zazen, incluindo sesshins (retiros tradicionais) em intervalos regulares. Havia ainda um currículo para o estudo de koans e um atendimento individual a cada estudante.

Maezumi Roshi encorajava seus discípulos e herdeiros no Darma a inovar e construir uma verdadeira tradição Zen americana, entretanto, ele mantinha em seu centro uma estrita aderência às práticas ortodoxas da Soto Zen[7]. Mas, como disse Bernie Glassman Roshi, seu discípulo mais antigo, não é que seu professor estivesse carregando a tradição da escola Soto quando chegou nos Estados Unidos; do mesmo modo que a escola Soto não estava carregando as tradições do Zen chinês. A palavra “tradicional” tem que ser considerada com cuidado[8].

Explica Egoku Sensei, outro de seus alunos:

“Não é sobre preservar algo e sim sobre fazê-lo crescer. Não era dele [Maezumi Roshi] a missão de desenvolver o Zen Americano no Ocidente. Seu trabalho era plantar as sementes. Como seria, como ele iria se manifestar, dependia de nós. Ele tinha uma tremenda fé em nós”[9]

No Minnesota Zen Meditation Center, Kataguiri Roshi também colocava forte ênfase na prática monástica, baseada nos ensinamentos de Mestre Dogen presentes no Eihei-shingi. Ele se empenhava em iniciar seus alunos, na maioria leigos, nas formas monásticas japonesas, traduzia sutras e versos dos cantos e explicava o significado de cada atividade realizada[10].

Além disso, vários professores japoneses e monges visitavam centros Zen, contribuindo neste movimento de transplante das formas japoneses para terras americanas. Entretanto, não foi sem algum conflito que a formalidade japonesa encontrou a sociedade americana, tão afeita ao individualismo. As gritantes diferenças culturais, principalmente o rígido formalismo e a estrutura vertical da vida comunitária japonesa, desapontou a muitos praticantes que, ou abandonaram a prática, ou desenvolveram sentimentos negativos em relação à mentalidade japonesa. Isso se deve também, como vimos acima, a uma visão corrente do Zen como uma religião da liberdade individual, buscada por aqueles que negavam regras, códigos morais e sistemas de valores[11].

Aqueles que insistiam em ultrapassar estas barreiras culturais e se aprofundavam na prática, encontravam, por sua vez, toda uma nova perspectiva e forma de ser e estar no mundo. Devemos lembrar que o que está por trás deste formalismo é uma prática espiritual que dá significado para cada atividade da vida cotidiana, desde acordar até ir para cama. Como vimos, até mesmo dormir era uma prática para Mestre Dogen. Neste sentido, a formalidade organiza a prática e a vida comunitária e prevê que cada uma de nossas atividades em casa ou no trabalho seja uma oportunidade de aprofundar nosso entendimento do Darma. Hoje, nas sangas americanas, este é o modelo de trabalho comunitário que perdura[12].

Afirma Okumura Shohaku Roshi (da linhagem de Kodo Sawaki) que certamente a forma monástica japonesa é uma expressão da espiritualidade japonesa e os praticantes americanos (e brasileiros!) não necessitam seguir as formas japonesas de estudar o Darma. Entretanto, para que se possa criar formas americanas para americanos praticantes da Soto Zen, as formas japonesas parecem ser a única fundação a partir das quais as formas americanas podem se desenvolver[13].

Um praticante americano destes primórdios afirma que não havia dúvida na mente de seus professores japoneses de que mudanças seriam inevitáveis, e portanto  orientavam que estivessem abertos a elas. Ao mesmo tempo, exortavam que seus alunos absorvessem ao máximo aquilo que eles estavam ensinando e que agissem devagar e com paciência, para que a mudança ocorresse sob uma fundação firme e sólida[14].

Afirma Okumura Roshi que as formas devem mudar de acordo com o tempo, localização e cultura. Ainda assim, a prática do Darma manifesta na performance de atividades diárias é um ponto muito importante dos ensinamentos de Mestre Dogen e que faz sentido para nós, mesmo que não vivamos em monastérios.

Uma mudança que já pode ser percebida desde aquela época é a forma de condução da prática dos leigos. Shunryu Suzuki dizia que seus alunos não eram exatamente leigos nem exatamente monges, posto que ali muitos leigos praticavam diariamente, com intensidade comparável aos monges ordenados no Japão. Neste sentido, no Brasil, Monja Coen Roshi (1947-) também tem trabalhado para a formação de Professores Leigos, uma vez que a prática monástica é muito dificultada e mesmo prejudicada pela ausência de uma comunidade budista, que teria como incumbência a manutenção de seus monges para que eles pudessem se dedicar integralmente ao Darma e à Sanga.

 Outra mudança é no papel das mulheres na prática, de formas não usuais no Japão, país fortemente marcado pela discriminação, sendo raro mulheres em posições de destaque e liderança. Mesmo que Mestre Dogen tenha ordenado mulheres e mencionado em seus escritos a igualdade de homens e mulheres para atingir a Iluminação, ainda há muito a ser conquistado em termos de igualdade entre monges e monjas na tradição Soto Zen. Até um século atrás, as monjas não tinham local próprio de treinamento, eram quase todas ordenadas por monges e praticavam em templos ou mosteiros masculinos, servindo em atividades de cozinha e limpeza, sem acesso à educação superior, não podendo então assumir tarefas de ensino e liturgia[15].

Muitas foram as monjas que lidaram com grandes discriminações mas mesmo assim se mantiveram firmes no propósito de seguir a vida religiosa, exigindo a igualdade de direitos. Por causa delas, hoje é possível a Shundo Aoyama Roshi, abadessa do Mosteiro de Treinamento para Monjas Especiais em Nagoya, desfrutar de uma posição de alto destaque dentro da hierarquia monástica Soto Shu. Ela é uma das poucas monjas que fizeram mestrado e doutorado em Estudos Budistas na Universidade de Komazawa e uma das abadessas mais jovens a assumir esse cargo; além disso é uma escritora budista reconhecida no Japão e no mundo, sendo constantemente convidada a dar palestras por todo Japão, nos Estados Unidos e na Europa[16].

“Ayoama, mulher de estrutura física pequena e delicada, jamais abandonou a tradição, mas estava plenamente inserida na erudição mais contemporânea. Existia nela uma rara habilidade de combinar o que se teima em separar. Não por acaso, tornou-se representante de toda uma geração de monjas com alguns direitos iguais aos dos monges: estudo, ensinamentos e autoridade. De alguma maneira, começava a ser preenchida uma lacuna existente desde os tempos de Buda. Sem dúvida houve mulheres que romperam com a estrutura anteriormente, mas agora toda uma época contribuía para que as conquistas não fossem isoladas. A abadessa, que carregava uma capacidade de luta inquebrantável, sabia porém que no cotidiano os combates mais estratégicos eram enfrentados nos domínios do próprio ser”[17].

Nos Estados Unidos, onde a segunda onda do feminismo nos anos 60 já havia ampliado o debate a questões de igualdade no mercado de trabalho e na família, e aos direitos em relação à sexualidade, a hierarquia monástica japonesa não deixou de ser questionada ou de encontrar resistências. Charlotte Joko Beck, por exemplo, aluna de Maezumi Roshi, percebia, sob a pretensa igualdade entre homens e mulheres, uma conduta patriarcal entre os membros de sua comunidade, afastando-se das hierarquias monásticas ligadas ao Japão e tornando-se uma referência feminina e uma das maiores mestras Zen da atualidade[18].

Como um das primeiras professoras ocidentais, ela tentou libertar o Zen americano de muitas das armadilhas da cultura e do patriarcado japoneses. Ela parou de raspar a cabeça, de vestir roupas formais ou usar títulos japoneses. Uma de suas grandes virtudes como professora foi que ela não tentou se clonar. Ela deixou seus próprios alunos e herdeiros digerirem seus ensinamentos e crescerem em suas próprias direções (…)”[19].


[1] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016.

[2] WEITSMAN, Sojun M. Zen in America. Soto Zen International Symposium, 2011.

[3] WRIGHT,  Dale S. Humanizing the Image of a Zen Master : Taizan Maezumi Roshi. EmWRIGHT,  D.& HEINE, S. Zen Masters. Oxford university Press, 2010.

[4] WRIGHT,  Dale S. Humanizing the Image of a Zen Master : Taizan Maezumi Roshi. EmWRIGHT,  D.& HEINE, S. Zen Masters. Oxford university Press, 2010.

[5] WRIGHT,  Dale S. Humanizing the Image of a Zen Master : Taizan Maezumi Roshi. EmWRIGHT,  D.& HEINE, S. Zen Masters. Oxford university Press, 2010.

[6] WEITSMAN, Sojun M. Zen in America. Soto Zen International Symposium, 2011.

[7] WRIGHT,  Dale S. Humanizing the Image of a Zen Master : Taizan Maezumi Roshi. EmWRIGHT,  D.& HEINE, S. Zen Masters. Oxford university Press, 2010.

[8] JONES, Noa. White Plums and Lizard Tails: The story of Maezumi Roshi and his American Lineage. Lion’s Roar Foundation. Disponível em: https://www.lionsroar.com/white-plums-and-lizard-tails-the-story-of-maezumi-roshi-and-his-american-lineage.

[9] JONES, Noa. White Plums and Lizard Tails: The story of Maezumi Roshi and his American Lineage. Lion’s Roar Foundation. Disponível em: https://www.lionsroar.com/white-plums-and-lizard-tails-the-story-of-maezumi-roshi-and-his-american-lineage.

[10] SHOHAKU, Okumura. Dogen Zenji’s stantards for community practice. Paper apresentado no Simpósio “Dogen Zen and its relevance for our time”. Universidade Stanford. 1999.

[11] SHOHAKU, Okumura. Dogen Zenji’s stantards for community practice. Paper apresentado no Simpósio “Dogen Zen and its relevance for our time”. Universidade Stanford. 1999.

[12] SHOHAKU, Okumura. Dogen Zenji’s stantards for community practice. Paper apresentado no Simpósio “Dogen Zen and its relevance for our time”. Universidade Stanford. 1999.

[13] SHOHAKU, Okumura. Dogen Zenji’s stantards for community practice. Paper apresentado no Simpósio “Dogen Zen and its relevance for our time”. Universidade Stanford. 1999.

[14] WEITSMAN, Sojun M. Zen in America. Soto Zen International Symposium, 2011.

[15] COEN, Monja. Zen Budismo e Gênero. Disponível em: https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-da-monja-coen/79-zen-Budismo-e-genero.

[16] COEN, Monja. Zen Budismo e Gênero. Disponível em: https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-da-monja-coen/79-zen-Budismo-e-genero.

[17] STEINER, Neusa C. Monja Coen, a mulher nos jardins de Buda. Ed Mescla, 2009.

[18] STEINER, Neusa C. Monja Coen, a mulher nos jardins de Buda. Ed Mescla, 2009.

[19] Charlotte Joko Beck. Disponível em: https://www.ordinarymind.com/charlotte-joko-beck

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).

Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (8) – A Escola Soto Zen do Japão

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

8 – A Escola Soto Zen do Japão

Podemos hoje ter acesso aos ensinamentos de Mestre Dogen graças a seu aluno Koun Ejo, que após a morte de seu professor arduamente trabalhou para compilar, organizar e propagar sua visão. Duas gerações depois, os ensinamentos chegaram naquele que seria considerado o mais importante ancestral na linhagem japonesa depois de Mestre Dogen: Mestre Keizan (1258-1325).

Graças a ele, o Zen de Mestre Dogen sobreviveu como uma tradição religiosa capaz de se sustentar ao longo do tempo, sendo atualmente a maior escola budista japonesa em número de adeptos. Por conta disso, ambos são considerados fundadores da Soto Shu.

Mestre Keizan praticou sob vários orientadores e a amplitude de seu treinamento e qualificação abrangeu todo o espectro das tradições budistas existentes na época. Entretanto, abandonou todas as outras tradições para seguir somente a linhagem de Mestre Dogen[1]. De todo modo, sua abertura e ecletismo permitiram que ele desenvolvesse uma forma de abordagem e vivência do Zen altamente integrativa e popular. Com isso, ele acabou transformando a Escola Soto de uma instituição monástica conservadora em um movimento de massa que se espalhou pelas províncias do norte e nordeste do Japão.

Sua prática Zen era marcada pela defesa do “apenas zazen” (shikantaza) e também por uma forte fé e devoção. Além disso, ele mantinha um relacionamento próximo com as pessoas comuns em serviços memoriais, funerais e através de atividades sociais e construção de projetos[2].

Em uma época em que as mulheres eram marginalizadas, destacou-se corajosamente por enfatizar a igualdade entre homens e mulheres, incentivando suas alunas a seguirem a vida monástica, advindo daí o impulso que resultou na organização das monjas da escola Soto Zen[3].

Uma de suas obras mais importantes é o Denkoroku (Anais da Transmissão da Luz), livro que explica as circunstâncias através das quais o Darma foi transmitido de Shakyamuni Buda para os vinte e oito ancestrais na Índia, para os vinte e três ancestrais na China até chegar em Mestre Dogen.

Até as últimas décadas do século XIX, a Soto Zen se consolidou como uma  tradição essencialmente monástica, mantendo claras distinções entre estilos de vida e prática de monásticos e leigos, baseada numa ideia budista antiga em que monges e monastérios deveria servir como “campos de mérito”. Isto é, seria papel dos monges manter a pureza moral, sentar em meditação e estudar os ensinamentos, dedicando-se inteiramente a realizar o Caminho. Os leigos, por sua vez, teriam o papel de participar destes esforços ao apoiar os monges com doações de comida, vestimentas e abrigo[4].

Desde a época de Mestre Keizan, os chefes militares e fazendeiros que apadrinhavam os monastérios Soto ficavam impressionados com a forma Zen de prática budista. Seu apoio era motivado largamente por sua crença do mérito que disso adviria e seu desejo de aplicar tal mérito a propósitos como, por exemplo, prevenção de desastres e alcance de objetivos mundanos. Além disso, os monges se conectavam às pessoas ao realizar funerais e ordenações em massa nas quais transmitiam os preceitos do Bodhisatva. Isso sem falar de sua participação em festivais religiosos e orações pelo sucesso das colheitas ou chuva, entre outras coisas[5].

Já no início do século XVIII, a Soto Zen era a maior escola de Budismo do Japão, com mais de 18 mil templos espalhados pelo país. Este crescimento só pode ser explicado se conseguimos entender o papel social que os templos assumiram na vida das pessoas comuns. Estudiosos afirmam que a chave para o crescimento da Soto Zen foi sua habilidade de se manter como uma escola distinta mas ao mesmo tempo não sectária. Ou seja, ao mesmo tempo em que os monges disseminavam suas próprias práticas, a elas incorporavam deidades locais e atendiam a necessidades sociais como as já citadas acima, além de se abrir à participação na cultura budista comum a todas as escolas do início do Japão moderno.

Isto dito, é intrigante constatar que apenas uma pequena porcentagem dos templos fez dos estudos dos textos de Mestre Dogen ou mesmo da prática de zazen seu carro chefe. Na realidade, a vasta maioria dos monges e leigos destes tempos nunca praticou zazen, nunca se envolveu com as típicas ações iconoclásticas dos grandes mestres Zen que ficaram para a  história e nunca leram os escritos de Mestre Dogen[6].

Para ser compreendida, a escola Soto Zen não pode ser retirada do contexto histórico e das dinâmicas sociológicas inerentes às sociedades: 800 anos de história viram uma infinidade de movimentos e, de acordo com historiadores modernos, não há porque esperar que ela exiba qualquer uniformidade ou consistência ao longo do tempo em seus arranjos sociais e atividades religiosas. Investigações revelam padrões recorrentes e traços que podem ser considerados “características” da escola, mas também aparece dentro dela grande diversidade, desacordo e competição[7].

Neste sentido, a antropóloga Cristina Rocha[8] identifica uma atitude dualística da Soto Zen em relação ao zazen: ao mesmo tempo em que ela afirma que o zazen está no coração e na essência dos ensinamentos de Mestre Dogen, ele é pouco promovido em sua congregação e muito poucos de seus monges efetivamente o praticam. Por outro lado, o foco na incorporação de costumes e práticas populares tais como funerais e rituais memoriais em detrimento do zazen acabou sendo um fator determinante na  expansão sem precedentes da escola.

Em paralelo, o prevalecimento do sistema de templo familiar também teve forte impacto na forma que a Soto Shu foi tomando ao longo do tempo. O fato de os monges poderem se casar a partir de 1872 acabou possibilitando a existência de templos hereditários, passados do pai monge para o filho monge mais velho. Sendo assim, em 1996, mais de 90% dos monges da Soto Zen eram casados e gerenciavam templos Zen como heranças de família. Portanto, havia nesta época mais de 15 mil templos gerenciados por famílias e apenas 31 monastérios no Japão[9].

E, por mais que ao longo da história vários mestres tenham chamado a atenção para a importância dos estudos e da prática do zazen, o impacto de suas ideias se restringia aos monastérios – local de treinamento intenso para monges e monjas –  alcançando pouco eco na prática diária da imensa maioria dos templos, focados em atender a outras necessidades da comunidade.

Esta ambivalência só parece ter se tornado um problema para a Soto Shu quando ela se expandiu para o Ocidente e teve que se confrontar com o olhar estrangeiro, que por si só é desnaturalizante e capaz de perceber aquilo que o olhar acostumado não mais enxerga.

Há aproximadamente 100 anos que a Soto Zen tem se espalhado internacionalmente e alguns autores apontam este fato como uma oportunidade para que a Soto Shu e o Budismo Japonês aprendam e ampliem seu próprio olhar sobre as suas possibilidades. Noriyuki Ueda, antropólogo cultural e professor universitário em Tokyo, vem há muitos anos dando palestras e conversado com as pessoas no Japão sobre o Budismo e percebe que a imagem dos templos e monges japoneses está um pouco desgastada. E quando ele conversa com os monges mais velhos sente neles um desencanto e desânimo pelo fato das gerações mais novas não terem interesse ou não entenderem o Budismo. Ele sugere que é neste ponto que a experiência em outros países – onde as pessoas são atraídas pelo espirito dos ensinamentos e por uma busca interior e não por nascerem em uma comunidade budista ou estarem presas a uma tradição – pode ser um rico aprendizado[10].

Diz ele que, quando conheceu a Califórnia, nos Estados Unidos, ficou chocado com o interesse das pessoas em conhecer e visitar os Zen Centers ali instalados. Mais chocado ficou com a profundidade e abundância de seus conhecimentos sobre o Budismo, maior do que a média dos seus conterrâneos. Outro fato estarrecedor foi  deparar com tantas monjas em papéis de destaque e liderança, algo raramente visto no Japão. Por fim, espantou-se ao perceber que os budistas na América e os budistas no Japão viviam a prática sob perspectivas completamente opostas: para os japoneses, o Budismo se constituiu como uma religião da família, enquanto para os americanos ele surgiu como uma alternativa mais individualista em relação à sua religião familiar, no caso o Cristianismo[11].

Cabe citar que em um momento da história japonesa chamado Período Tokugawa (1603-1868) o governo estabeleceu um “sistema paroquial” que obrigava todas as famílias japonesas a se registrar e se associar a um templo budista (danka seido). Assim, por conta de uma necessidade secular de controle, o Japão viveu uma expansão sem precedentes das instituições budistas[12].

Deste modo, herdou-se deste período esta vinculação automática de uma família a um templo budista (de todas as escolas, não apenas da Soto Zen), o que quer dizer que nascer em uma determinada família implica fazer parte de uma determinada paróquia e se relacionar com um ou mais monges, responsáveis por conduzir os rituais budistas requisitados[13].

Para nós brasileiros isso é facilmente compreendido, guardadas as peculiaridades culturais, se fizermos um paralelo com a forma como a maioria de nós se relaciona com a religião católica: nascemos numa família católica, somos batizados, fazemos primeira comunhão e ocasionalmente crisma, casamos mas não necessariamente assumimos o catolicismo como uma caminho de prática espiritual, advindo daí a peculiar noção de “católico praticante ou não praticante”. Deste modo, também existe no Japão o fenômeno de monges se tornarem monges porque precisam dar continuidade ao negócio da família, não porque estejam identificados com a prática ou porque realmente acreditem no Budismo como um caminho de superação do sofrimento.

Como a prática segue viva, vários foram aqueles que buscaram trazer à luz este estado de coisas, ressaltando elementos para que a escola Soto Zen continuasse se transformando. De acordo com causas e condições específicas, Mestres surgiram e provocaram, com sua própria forma de ser e estar no mundo, grandes mudanças na prática de várias pessoas. Sawaki Roshi (1880-1965), por exemplo, é amplamente creditado como um transformador da prática Zen no Japão. Ele foi chamado de monge sem-teto porque não tinha seu próprio templo ou mosteiro.

“As pessoas me chamam de Monge sem teto, mas eu não tomo isso como insulto. Eles assim me chamam porque eu nunca tive uma casa ou um templo. Todos somos sem teto. É um erro você pensar que tem uma casa fixa”[14].

A partir dos 40 anos, começou a viajar por todo o Japão para liderar sesshins ou zazenkais e dar palestras sobre o Darma nos templos, em casas particulares ou onde quer que fosse convidado. Ele continuou a praticar dessa maneira até os 83 anos. Nos quase 50 anos de viagens e ensino incessantes, muitos leigos começaram a praticar. Antes disso, os leigos não eram incentivados a praticar zazen já que esta era considerada uma prática para treinar monges em mosteiros. Então, graças ao grande esforço e às habilidades de Sawaki Roshi, bem como à sua personalidade forte e bem-humorada, muitos japoneses foram inspirados a praticar zazen[15].

Ele acreditava no zazen como um caminho para a não violência ativa, para o diálogo, para a paz mundial, para a transformação da consciência humana — a maior revolução de todos os tempos. Para ele, por meio do zazen, haveria harmonia na Terra[16].

Disse Sawaki Roshi:

“Meus sermões são criticados por certas audiências. Dizem que meus sermões são ocos, não sagrados. Eu concordo com eles porque eu mesmo não sou santo. Os ensinamentos do Buda guiam as pessoas para um lugar onde não há nada de especial… As pessoas muitas vezes interpretam mal a fé como um tipo de êxtase de intoxicação… A verdadeira fé é ficar sóbrio diante de tal intoxicação” [17].

Por outro lado, muitos outros monges, enviados como missionários a outros países, se depararam com uma demanda diferente daquela a que estavam acostumados e chegaram até mesmo a romper (ou serem afastados) com a Soto Shu por conta de diferenças na forma de ver e conduzir a prática.

Shunryu Suzuki Roshi (1904-1971), por exemplo, cresceu para se tornar um respeitado professor na linhagem Soto Zen e abade no templo de seu pai. Mas, em 1959, com 54 anos, foi para os Estados Unidos com o propósito de servir à pequena comunidade Zen japonesa-americana em São Francisco. Encantou-se com a seriedade e qualidade da “mente de principiante” entre os americanos que conheceu e acabou se tornando um dos mais influentes professores do Zen neste país. Por conta disso, foi forçado a demitir-se de seu cargo de abade do templo da Soto Zen em São Francisco, pois suas atividades com os alunos americanos não-japoneses não eram aceitas pela comunidade japonesa.

Seguindo seus passos, Moryama Roshi, que inicialmente fora enviado a São Francisco para substituir Shunryu Suzuki mas que, anos depois, acabou vindo para o Brasil, contou para a antropóloga Cristina Rocha sobre seu desapontamento com o Zen japonês e suas esperanças para o Brasil. Disse ele:

“No Japão, os monges interessam-se mais por práticas sociais e o dinheiro a ser arrecadado por serviços prestados à comunidade (tais como funerais e cultos aos ancestrais) do que pelo trabalho espiritual. É por isso que coloco mais energia em outros países. Aqui (no Brasil) o Zen Budismo pode ser recriado de uma maneira mais pura. Os países de tradição budista estão perdendo a essência do Budismo. Acredito que as religiões são criadas, evoluem e se degradam, e é o que está acontecendo no Japão no momento. Sinto que aqui acontece o mesmo que presenciei acontecer na Califórnia: no Brasil há um tipo de energia que não encontro no Japão”[18].

Independente da crítica que se possa fazer, não podemos esquecer que cada contexto apresenta uma demanda, cada demanda configura uma rede de ações e reações que vão dando forma ao modo como uma instituição se manifesta em um determinado momento.

Como disse Mestre Dogen,

“Lembre-se: entre budistas, não discutimos sobre a superioridade ou inferioridade de filosofias, ou escolhemos entre superficialidade ou profundidade do Darma; precisamos apenas saber se a prática é genuína ou artificial. Alguns entraram na corrente da verdade do Buda a convite da grama, das flores, montanhas e rios. Alguns receberam e mantiveram o selo de Buda segurando solo, pedras, areia e seixos. Além disso, a vasta e grande palavra é ainda mais abundante que os inúmeros fenômenos existentes. E o giro da grande roda do Darma está contido em cada molécula. Sendo assim, as palavras “Mente aqui e agora é Buda” são apenas a lua na água e a ideia “Apenas sentar é tornar-se Buda” é também um reflexo em um espelho. Não devemos ser pegos pela habilidade das palavras. Agora, ao recomendar a prática em que bodhi é diretamente experimentado, espero demonstrar a verdade sutil que os ancestrais budistas transmitiram um a um e, assim, transformar você em uma pessoa do estado real da verdade. Além disso, para a transmissão do Buddha-Darma, devemos sempre tomar como professor uma pessoa que experimentou o estado de [Buda]. Nunca é suficiente tomar como nosso professor orientador um estudioso que coleciona palavras; isso seria como o cego guiando um cego (…)”[19].


[1] Mestre Zen Keizan Jokin.  Em Jornal Zendo Brasil, ano 17, nº 66 , outubro/novembro/dezembro de 2018.

[2] WILLIAMS, Duncan R. Toward a Social History of Sôtô Zen. Em The Other Side of Zen: A Social History of Sōtō Zen Buddhism in Tokugawa Japan. Buddhisms: A Princeton University Press Series. Capítulo 1, disponível em: http://assets.press.princeton.edu/chapters/s7883.pdf

[3] STEINER, Neusa C. Monja Coen, a mulher nos jardins de Buda. Ed Mescla, 2009.

[4] FOULK, T. Griffith. History of the Soto Zen school. Disponível em: https://terebess.hu/english/zenschool.html

[5] FOULK, T. Griffith. History of the Soto Zen school. Disponível em: https://terebess.hu/english/zenschool.html

[6] WILLIAMS, Duncan R. Toward a Social History of Sôtô Zen. Em The Other Side of Zen: A Social History of Sōtō Zen Buddhism in Tokugawa Japan. Buddhisms: A Princeton University Press Series. Capítulo 1, disponível em: http://assets.press.princeton.edu/chapters/s7883.pdf.

[7] FOULK, T. Griffith. History of the Soto Zen school. Disponível em: https://terebess.hu/english/zenschool.html

[8] ROCHA, Cristina. Zazen or not zazen: The predicament of Sōtōshū’s Kaikyōshi in Brazil. Japanese Journal of Religious Studies 31: 163–84. 2004

[9] ROCHA, Cristina. O Zen no Brasil: em busca da modernidade cosmopolita. Campinas: Ponte, 2016..

[10] UEDA, Noriyuki. Keynote lecture. Soto Zen International Symposium, 2011.

[11] UEDA, Noriyuki. Keynote lecture. Soto Zen International Symposium, 2011.

[12] WILLIAMS, Duncan R. Toward a Social History of Sôtô Zen. Em The Other Side of Zen: A Social History of Sōtō Zen Buddhism in Tokugawa Japan. Buddhisms: A Princeton University Press Series. Capítulo 1, disponível em: http://assets.press.princeton.edu/chapters/s7883.pdf

[13] WILLIAMS, Duncan R. Toward a Social History of Sôtô Zen. Em The Other Side of Zen: A Social History of Sōtō Zen Buddhism in Tokugawa Japan. Buddhisms: A Princeton University Press Series. Capítulo 1, disponível em: http://assets.press.princeton.edu/chapters/s7883.pdf

[14] KÔSHÔ, Uchiyama. The Zen Teaching of “Homeless” Kodo. Disponível em:ttps://terebess.hu/english/sawaki.html

[15] AGEE, J. Good for Nothing. A modern-day Zen master reflects on three generations of irreverent teachings. Tricycle Magazine. Disponível em: https://tricycle.org/magazine/good-nothing/

[16] COEN, Monja. 108 contos e parábolas orientais. 1. ed. – São Paulo : Planeta, 2015.

[17] KÔSHÔ, Uchiyama. The Zen Teaching of “Homeless” Kodo. Disponível em:https://terebess.hu/english/sawaki.html.

[18] ROCHA, C. A Sotoshu no Brasil. Missionários Nikkei. Em SAGAWA, R (org). O Nikkei abrasileirado. FCL Publicações, 2008.

[19] DOGEN, E. Bendowa. A Discourse on Doing One’s Utmost in Practicing the Way of the Buddhas in Shobogenzo. The treasure House of the Eye of the True Teaching. A Trainee’s Translation of Great Master Dogen’s Spiritual Masterpiece. Rev. Hubert Nearman, O.B.C., translator. Shasta Abbey Mount Shasta, California. First Edition—2007.

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).