Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (6) – O que Mestre Dogen encontrou na China

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

6 – O que Mestre Dogen encontrou na China

Decisão tomada e sem tempo a perder, Mestre Myozen e alguns alunos desembarcaram na China. Na realidade, possivelmente por motivos burocráticos, Mestre Dogen permaneceu no navio por três meses, enquanto Mestre Myozen seguiu seu caminho até o Monte Tientung, onde seu antigo professor Eisai havia sido treinado. Ficou ali por três anos até sua morte e suas cinzas foram levadas de volta para o Japão por Mestre Dogen.

Após sair do navio, em suas várias visitas a monastérios chineses, Mestre Dogen desencantou-se com a situação de dificuldade e declínio do Budismo chinês, inclusive da linhagem Rinzai, cujos mestres passaram a se envolver na política, fazendo com que os centros de prática se desvirtuassem em centros da vida social e política[1].

Disse ele:

“Embora haja na China um grande número daqueles que professam a si mesmos como descendentes dos Budas e dos patriarcas, poucos são os que estudam a verdade e poucos os que a ensinam (…)”[2].

Foi quando, ainda desiludido por não encontrar um professor autêntico e prestes a voltar para o Japão, ouviu notícias de um velho mestre que assumira a abadia do monastério de Tientung que ele já havia visitado no inicio da viagem: Tendo Nyojo (Rujing, 1163-1228).

Ao terem contato, Mestre Dogen foi imediatamente tomado pela sabedoria, integridade e disciplina de prática de Mestre Tendo[3].  Tornou-se seu discípulo e com ele praticou por dois anos e meio, recebendo a transmissão do darma ao final do treinamento e retornando para o Japão no ano de 1227.

Tendo Nyojo foi um dos poucos mestres da linhagem Soto (Ts’ao Tung, em chinês) a liderar um importante monastério tradicionalmente ligado à linhagem Rinzai (Lin Ji). Era um mestre gentilmente rigoroso. Simples em hábitos, dieta e vestes, e imune aos atrativos de reconhecimento da corte. Era, acima de tudo, firme em sua defesa  do zazen[4].

Conta Mestre Dogen que, em uma de suas palestras formais, Mestre Tendo disse:

“Eu estou velho. Deveria ter me aposentado do mosteiro e me mudado para um eremitério para cuidar de mim mesmo em minha velhice. No entanto, eu sou o abade e seu professor, cujo dever é quebrar as ilusões de cada um de vocês e transmitir o Caminho; portanto, eu às vezes uso uma linguagem dura para repreendê-los, ou bato em vocês com o bastão de bambu. Eu me arrependo de ter que fazer isso. Contudo, esta é a maneira de fazer com que o Darma de Buda floresça. Irmãos, por favor, tenham compaixão de mim e perdoem-me pelos meus atos”[5].

Mestre Dogen conta ainda que, ao ouvir essas palavras, seus discípulos derramaram lágrimas, cientes de que “somente com tal espírito se pode ensinar e propagar o darma”.      

Tal ‘espírito’ a que Mestre Dogen se referia permeava todas as ações de Mestre Tendo e o colocava para além das divisões sectárias do Budismo. Ele aspirava por um Budismo aberto e universalizante e não gostava nem mesmo de nomear sua prática como sendo Zen/Ch’an. Seu objetivo era aprofundar o Darma[6].

Para ele, o Budismo “não devia reverenciar nada daquilo que sinalizasse glória e poderes mundanos; devia, sim, contentar-se com a virtude da pobreza e do viver na profunda paz das montanhas. O Darma deveria ser buscado para o bem do Darma[7].

“Presunção, discriminação, imaginação, intelecto, compreensão humana e assim por diante não tem nada a ver com o Budismo quando estudando o Zen. Muitos [que], assim como crianças, brincam com estas coisas desde o nascimento, acordem para o Budismo agora. Acima de tudo evite presunção e discriminação: reflita sobre isto. O caminho de penetrar o portal é conhecido apenas pelos Mestres que obtiveram este Darma. Não pode ser alcançado pelos que apenas estudam textos”[8].

No momento em que encontrou um autêntico mestre, um Mestre Desperto, Mestre Dogen pôde encontrar a si mesmo. Suas angústias e dúvidas cessaram a partir do momento em que acessou uma esfera de entendimento para além das teorizações e conceitos, que sempre podem ser contraditos. O mundo dividido em partes, divisões, partidos, terremotos, guerras e crenças, cedeu espaço àquilo que não é quebrado, que é uno – a “unidade do ser” mencionada por Mestre Eisai.

Mais do que resolver paradoxos teóricos, a relação com o Mestre e seu método original de treinamento e orientação permite a transmissão direta, mente a mente, do “olho do Darma que é puro e límpido, a sublime mente de nirvana, a realidade que é sem forma, a autêntica verdade que é sutil”.

A sabedoria do Zen está corporificada na pessoa de um Mestre. Sem ele, o passado do Zen é sem vida.

Nas palavras de um praticante contemporâneo:

“Como música aprisionada em um disco que precisa de energia elétrica e um aparelho de reprodução para que ela viva, o coração mente de Buda, sepultado nos sutras, precisa de uma força viva na pessoa de um Roshi (Mestre) iluminado para recriá-lo” [9].

O Mestre é o responsável por encontrar meios para que esta música seja ouvida pelos alunos. Dos inúmeros expedientes de que dispõe, o que permanece constante através dos séculos como o método mais direto para adentrar o Caminho é o zazen. 

“A partir do momento em que um discípulo vem a encontrar face a face aquele que será seu amigo espiritual e conhecido professor, não há necessidade do discípulo oferecer incenso, fazer prostrações, cantar os nomes dos Budas, realizar práticas ascéticas e penitências ou recitar as escrituras: o Mestre apenas faz com o discípulo sente em pura meditação até que ele deixe seu corpo e mente caírem”[10].

Diz ainda Mestre Dogen:

Depois de ouvir as instruções de meu professor sobre a verdade da importância do zazen, pratiquei o zazen dia e noite. Quando os outros monásticos abandonavam o zazen temporariamente em momentos de calor ou frio extremos por medo de ficarem doentes, pensava comigo mesmo, devo ainda dedicar-me ao zazen, mesmo ao ponto de morte pelo ataque de alguma doença. Se eu não pratico o zazen, mesmo sem doença, de que serve cuidar do meu corpo? (…) Pensando assim continuamente, sentei-me em zazen resolutamente dia e noite, e nenhuma doença adveio”[11].

O zazen que Mestre Dogen encontrou na China, na pessoa de Mestre Tendo Nyojo, foi um zazen diferente daquele que resolve koans ou conta respirações. Ali ele conheceu e experenciou o Shikantaza – na definição de Yasutani Roshi, “um estado mais elevado da consciência concentrada, no qual alguém não está tenso, apressado e nem, certamente, negligente. É a mente de alguém que enfrenta a morte[12].

Zazen não é apenas um sentar qualquer. É um sentar fundamentado na fé inabalável de que sentar-se como sentaram os ancestrais, com a mente vazia de todos os conceitos, crenças e pontos de vista, é a atualização e o desabrochar da mente Bodhi intrinsecamente iluminada com que todos somos dotados[13].

E esta fé é o fator sem o qual não há iluminação. Fé como um compromisso interior e sincero com a vida espiritual, uma vez que ela exige esforço resoluto e aplicação da vontade, empenho, energia, iniciativa. Energia para superar-se, para dominar a própria mente e não se entregar[14]. Ou seja, a fé é um pré-requisito para a iluminação.

“Nosso grande Mestre Xaquiamuni só conseguiu alcançar o ensinamento que prevalece no mundo atual após se submeter a severo treinamento por incontáveis eons. Considerando-se quão dedicado foi o fundador do Budismo, podem os seus descendentes querer fazer menos do que ele? Aqueles que buscam o Caminho não devem procurar por uma prática fácil. Procedendo assim, vocês jamais serão capazes de alcançar o mundo verdadeiro da iluminação ou de encontrar a sala do tesouro. Até mesmo o mais talentoso dos antigos ancestrais afirmou que o Caminho é difícil de praticar. Você deveria se dar conta do quanto o Budismo é imenso e profundo. Se o Caminho fosse, originalmente, tão fácil de praticar e entender, esses primeiros e talentosos ancestrais não teriam chamado a atenção, exaustivamente, para suas dificuldades. As pessoas de hoje, quando comparadas aos antigos ancestrais, não chegam nem a um único fio de cabelo em relação a um rebanho de nove vacas! Isto quer dizer que, mesmo se essas pessoas modernas, que não possuem nem habilidade nem sabedoria, se esforçassem ao extremo, a sua prática, imaginada como difícil, ainda assim seria incomparável àquela dos primeiros ancestrais”[15].

Eis a verdadeira natureza de nosso Voto.


[1] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen budista. PPCIR-UFJF. Disponível em https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-diversos/791-a-espiritualidade-zen-budista.

[2] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[3] Citado em LOORI, John D. Dropping Off Body and Mind. Darma Discourse. Koans of the Way of Reality, Case 108. Master Dogen’s Enlightenment. Disponível em: http://www.mro.org/mr/archive/21-1/.

[4] DHARMANET. The story of Zen. Disponível em: https://dharmanet.org/coursesM/27/zenstory27a.htm

[5] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[6] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen-budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-725, jul.l/set 2012.

[7] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen-budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-725, jul.l/set 2012.

[8] DOGEN, E. Gakudo Yojinshu – Guia para a prática do Caminho. Disponível em:

https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-tradicionais/107-gakudo-yojinshu-guia-para-a-pratica-do-caminho.

[9] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia.

[10] DOGEN, E. Bendowa. A Discourse on Doing One’s Utmost in Practicing the Way of the Buddhas in Shobogenzo. The treasure House of the Eye of the True Teaching. A Trainee’s Translation of Great Master Dogen’s Spiritual Masterpiece. Rev. Hubert Nearman, O.B.C., translator. Shasta Abbey Mount Shasta, California. First Edition—2007.

[11] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[12] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia.

[13] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia.

[14] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen-budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-725, jul.l/set 2012.

[15] DOGEN, E. Gakudo Yojinshu – Guia para a prática do Caminho. Disponível em:

https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-tradicionais/107-gakudo-yojinshu-guia-para-a-pratica-do-caminho.

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).

Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (5) – De Kennin Ji para a China – refazendo os caminhos de Mestre Eisai

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

5 – De Kennin Ji para a China – refazendo os caminhos de Mestre Eisai

Mestre Eisai faleceu meses antes de Mestre Dogen se fixar em Kennin Ji, e por isso seu treinamento ficou a cargo de Mestre Myozen.

Disse dele Mestre Dogen:

“Mestre Myozen era o mais excelente dos alunos de Mestre Eisai, e ele recebeu os ensinamentos da verdade de Buda diretamente dele. Nenhum dos outros estudantes se comparavam a ele” [1].

Mestre Dogen foi aluno de Mestre Myozen por nove anos, até sua morte. Foi por ele ordenado como um monge Zen, recebeu o manto e a tigela simbólicos da tradição Zen, obteve os ensinamentos secretos dos rituais esotéricos, estudou o cânone dos regulamentos monásticos e começou a aprender sobre a linhagem Rinzai. Depois de alguns anos, recebeu a transmissão do Rinzai Zen e, com 24 anos, sua formação budista, teórica e prática, era muito ampla[2]. Mas algo ainda faltava.

Seguindo os passos de Mestre Eisai, Mestre Dogen acompanhou Mestre Myozen em sua ida à China. Ele conta que, já durante os preparativos para a viagem à China, Mestre Myozen recebeu a notícia de que seu antigo professor Tendai estava morrendo. Ele requisitava sua presença e, em consequência, o adiamento da viagem. Incerto sobre o caminho a seguir, Mestre Myozen consultou seus alunos: “Devo ir à China para aprofundar minha prática Zen ou devo honrar o débito com meu antigo professor?”

Seus alunos foram unânimes em afirmar que a melhor decisão seria adiar a viagem. Mestre Dogen, por sua vez, lançou-lhe uma reflexão instigante dizendo que, se ele considerava que sua realização do Darma de Buda era satisfatória tal como se encontrava naquele momento, ele deveria ficar.

Dito isso, Mestre Myozen ponderou:

            “Todos vocês concordam que eu deveria ficar. Minha resolução é diferente. Mesmo que eu adie minha viagem por enquanto, aquele cuja morte é certa, irá morrer. Minha permanência aqui não irá ajudar a prolongar sua vida. Mesmo que eu fique para cuidar dele, sua dor não irá cessar. Também, não será possível escapar da vida-morte porque eu cuidei dele antes de sua morte. Isso seria apenas para cumprir seu desejo e confortar seus sentimentos por um tempo. Seria inteiramente inútil no tocante a adquirir emancipação e alcançar o Caminho. Permitir erroneamente que ele dificulte minha aspiração para buscar o Darma seria causa de más ações. Entretanto, se eu levar adiante minha aspiração de ir para a China para buscar o Darma, e alcançar um pouco de iluminação, embora isso vá contra os sentimentos deludidos de uma pessoa, para muitas outras esta seria a condição para encontrar o Caminho. Como o mérito é maior, isso irá ajudar a devolver o débito de gratidão que tenho com meu professor (…).

Desperdiçar em vão um tempo que é facilmente perdido, por consideração a uma pessoa, não estaria de acordo com o desejo de Buda. Portanto, eu firmemente decido ir para a China agora”[3].

Para Mestre Dogen, tal decisão foi uma clara demonstração da mente bodhi. Ele mais tarde diria a seus próprios alunos que não se envolvessem em assuntos inúteis e perdessem tempo, usando seus familiares ou professores como desculpa ou justificativa para adiarem ou desistirem de sua busca espiritual.  “Não percam tempo”.

            “Vidamorte é de suprema importância. Tempo rapidamente se esvai, e oportunidade se perde. Cada um de nós deve esforçar-se por despertar. Cuidado. Não desperdice esta vida”[4].


[1] DOGEN, E. Bendowa. A Discourse on Doing One’s Utmost in Practicing the Way of the Buddhas in Shobogenzo. The treasure House of the Eye of the True Teaching. A Trainee’s Translation of Great Master Dogen’s Spiritual Masterpiece. Rev. Hubert Nearman, O.B.C., translator. Shasta Abbey Mount Shasta, California. First Edition—2007.

[2] LOORI, John D. Dropping Off Body and Mind. Darma Discourse. Koans of the Way of Reality, Case 108. Master Dogen’s Enlightenment. Disponível em: http://www.mro.org/mr/archive/21-1/.

[3] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[4] Poema lido depois do último período de zazen.

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).

Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (4) – Mestre Dogen encontra Mestre Eisai

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

4 – Mestre Dogen encontra Mestre Eisai

Disse Mestre Eisai:

“Eu sou uma pessoa rude nascida e criada no Japão, vivendo em uma floresta no sopé de uma montanha. Seguindo o exemplo de meus antecessores, empreendi longas viagens através dos rios e mares. Vestindo um manto sujo, passei dias sentado [em meditação], de frente para uma parede em silêncio. Eu estava satisfeito com o meu destino e abstive-me de expor minha visão para os outros, pois senti-me profundamente envergonhado com o meu modo de vida que estava cheio de asneiras. Recentemente, no entanto, seguindo os passos dos antigos mestres por um tempo, observei o ‘estilo de despertar’ de um mestre chinês. Ele era, em alguns momentos, avidamente atento, mas em outros simplesmente parava. Contudo, assim que eu queimava um pedaço de incenso para saudar o mestre (Xu’an Huaichang; Ki’an Esho), a relação de convidado e anfitrião era estabelecida entre nós. Felizmente, seguindo as instruções do ancestral, eu tive uma abertura antecipada do ‘olho do despertar’. Repetidamente cultivei o método de transcender o nascimento e a morte e, entrando no Caminho, voltei para casa. A partir do momento em que eu já atingi a ‘unidade de ser’, eu gostaria muito de ajudar no florescimento do Caminho do ancestral neste país, o Japão. Essa é a única razão pela qual eu tomei para mim a responsabilidade pela sua realização e ao mesmo tempo pela qual eu oro sinceramente. Por causa disso, cultivei repetidamente o método de transcendência, e quando eu olho para trás, de novo e de novo, não vejo uma palavra a ser transmitida ou circulada”[1].

O ‘estilo de despertar’ de Mestre Eisai preencheu o mosteiro de Kennin Ji durante sua vida e algum tempo após sua morte. Sua virtude e sabedoria chegaram aos ouvidos de Mestre Dogen e,  quando foi possível, este foi buscá-lo para tentar esclarecer sua dúvida mais essencial sobre o sentido da prática budista.

Já com 14 anos de idade, Mestre Dogen tornou-se um monge budista da escola Tendai. Sua vida, marcada pelas perdas precoces de seu pai, quando ele contava dois anos, e de sua mãe, aos oito, o colocaram desde cedo em contato com a dor pungente da impermanência e com o questionamento sobre o sentido da existência e do sofrimento. A morte de sua mãe foi um dos eventos mais devastadores de sua vida, marcando-a com um forte senso de pesar e com uma determinação clara de buscar a iluminação[2].

  Além disso, registra-se que seus quatro primeiros professores do Darma, da linhagem Tendai, morreram antes que ele completasse 17 anos; Myozen, quinto professor e amigo, quando ele tinha 25 e seu último professor, Tendo Nyojo, de quem recebeu a transmissão da linhagem, faleceu quando ele completou 28.

Por outro lado, não podemos subestimar o impacto da época em que ele viveu, de caos e sofrimento decorrentes da instabilidade causada pelas rivalidades políticas e a sanguinária luta pela hegemonia do poder, algo que incluía os próprios monastérios da época. Para se ter uma ideia, as maiores instituições budistas sentiam necessidade de empregar milhares de “monges guerreiros”, treinados em artes marciais e armados, que tinham como objetivo proteger o templo e suas propriedades ou mesmo como arma para forçar decisões politicas ou destruir seitas budistas rivais. Como se já não bastasse, durante este período, o Japão sofreu uma longa série de catástrofes naturais, quando furacões, terremotos e sucessivas secas devastaram as vilas e campos, lançando a população em períodos de extrema fome e pobreza[3].

Uma promessa feita a sua mãe – aliada à natureza inquieta de sua mente questionadora – fizeram com que o jovem Dogen, aos 13 anos, viesse a fugir da carreira aristocrática a ele reservada por seu tipo paterno, responsável por sua educação.

Com a ajuda de outro tio, irmão de sua mãe e monge, tornou-se também ele um monge no Monastério Tendai, localizado no Monte Hiei. Desde criança afeito aos estudos, dedicou-se com afinco aos ensinamentos da escola Tendai, às práticas de meditação e aos ensinamentos esotéricos do sul da Índia. Com 18 anos, já tinha lido tudo o que lhe chegara sobre o Budismo.

Apesar disso, sua busca apenas começava. Nas palavras do próprio Mestre Dogen:

“Estudantes do Caminho, como iniciantes, quer você tenha ou não mente bodai (bodi citta), você deveria ler e estudar minuciosamente as escrituras, sutras e śastras[4]. Minha mente bodhi foi inicialmente despertada por conta de minha percepção da impermanência. Eu visitei muitos lugares próximos e longínquos (para encontrar um verdadeiro professor) e eventualmente deixei o mosteiro em Monte Hiei para praticar o Caminho. Finalmente me fixei em Kennin Ji.

Durante esse tempo, na medida em que não consegui encontrar um verdadeiro professor nem bons praticantes, fiquei confuso e maus pensamentos brotaram. Primeiramente, meus professores me ensinaram que eu deveria estudar tanto quanto os nossos predecessores para me tornar sábio e ser (re) conhecido na corte e famoso em todo o país.

Então, quando estudei os ensinamentos, pensei em me tornar igual aos sábios antigos deste país ou igual aqueles que receberam o título de Daishi (grande professor), etc.

Quando eu li o Kosoden, Zoku-kosoden[5] e assim por diante e aprendi sobre o estilo de vida de eminentes monges e seguidores do Darma de Buda na Grande China, notei que eles eram diferentes daquilo que meus professores haviam me ensinado. Eu também comecei a entender que a mente que eu havia estimulado era desprezada e odiada em todos os sutras, śastras e biografias. Eu finalmente percebi a verdade; mesmo se eu pensasse em obter fama, seria melhor me sentir pequeno [envergonhado] perante os antigos sábios e pessoas sinceras de gerações vindouras, do que ser bem visto pelas pessoas indignas de hoje.

Se eu desejar ser igual a alguém, então seria melhor sentir-me menor  perante os eminentes predecessores da Índia e da China e trabalhar para me tornar um seu igual. Então, desejo me tornar igual aos vários seres celestiais, seres não visíveis, Budas e bodhisatvas (…)

Um antigo disse: “Não seja arrogante e nem se considere igual aos sábios superiores. Não se deprecie e nem pense em si mesmo como inferior”. Isso significa que ambos são [uma espécie de] arrogância. Embora você possa estar em alta posição, não se esqueça que você pode cair. Embora você possa estar seguro agora, lembre-se que você pode ter que enfrentar o perigo. Embora você possa estar vivo hoje, não pense que você estará necessariamente vivo amanhã. O perigo da morte está bem aos seus pés” [6].

A sua busca por um autêntico professor continuava. Principalmente porque, quanto mais ele estudava, mais um aparente paradoxo o incomodava: se, de acordo com os ensinamentos budistas tradicionais, nossa natureza essencial é perfeita (Buda), por que temos que praticar e lutar para atingir essa perfeição? Ou, se a natureza Buda deve ser adquirida, como é possível que seja inerente as todos os seres?

Nenhum de seus professores até então conseguira lhe dar uma resposta satisfatória ou que ele pudesse compreender  Até que um deles o orientou a procurar a solução de seu dilema com um monge que havia voltado da China com o selo de transmissão que o grande Mestre Bodidarma havia levado da Índia para aquele país: Mestre Eisai[7].

E assim, Mestre Dogen foi para Kennin Ji.

Conta Mestre Dogen que, ao adentrar Kennin Ji pela primeira vez, todos os monges da sanga, de acordo com seu grau de entendimento e capacidade, protegiam seus corpos, boca e mente de ações inadequadas e equivocadas e firmemente decidiam-se por não falar ou fazer nada que fosse ruim para o Caminho de Buda ou danoso a outros. Depois que o abade Eisai faleceu, enquanto a influência de sua virtude permanecia forte, os monges eram desta forma. Com o passar do tempo, tal atitude se perdeu[8].

Há grandes indícios de que Mestre Dogen tenha conhecido pessoalmente Mestre Eisai, e que ele tenha lhe deixado uma marca profunda, ainda que breve, uma vez que Mestre Dogen se fixou em Kennin Ji nos nove anos seguintes e recebeu a transmissão da linhagem Rinzai de Mestre Myozen, sucessor de Mestre Eisai.

Para a grande dúvida de Mestre Dogen “por que buscar a perfeição, se já somos perfeitos” ou “por que praticar se já somos iluminados” um Mestre Zen, tal como Eisai, diria: “Budas, precisamente por serem Budas, não mais pensam em termos de ter ou não uma natureza Perfeita; apenas os deludidos pensam nestes termos”[9].

Com esta resposta, Mestre Dogen despertou para uma verdade simples mas profunda de que a busca e prática espiritual não tem como objetivo transformar seres humanos em Budas; não tem a ver com evoluir de um estado imperfeito, inferior para um estado superior. Na realidade, praticar é expressar esta perfeição. Budas simplesmente expressam sua natureza iluminada; deludidos correm atrás de algo que pensam que não possuem.

“Portanto, nem mesmo somos nós que praticamos mas o Buda que já somos é quem pratica. Por causa disso, realização é a prática do esforço não dualista, não o resultado ou acumulação de quaisquer práticas anteriores”.

O paradoxo conceitual se resolvera. Mas havia algo mais que Mestre Dogen ainda não havia encontrado. No entanto, apenas uma década depois, na China da dinastia Sung, viria a encontrar o que faltava.


[1] EISAI, Myoan. A Treatise on Letting Zen Flourish to Protect the State. Em Zen Texts. Numata Center for Buddhist Translation and Research. 2005.

[2] LOORI, John D. Dropping Off Body and Mind. Darma Discourse. Koans of the Way of Reality, Case 108. Master Dogen’s Enlightenment. Disponível em: http://www.mro.org/mr/archive/21-1/.

[3] BIRINGER, T.  The True Nature of Horror, Suffering, & Samsara? Disponível em: http://dogenandtheshobogenzo.blogspot.com/2010/09/true-nature-of-horror-suffering-samsara.html\

[4] Comentários sobre os Sutras. Um dos Tri-Pitaka (três categorias de escrituras budistas), juntamente com os sutras e o vinaya (textos de preceitos) (Nota 1 Em DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki).

[5] O Zoku-kosoden foi compilado por Nanzan Dosen (596–667) o fundador da Escola  Nanzan-ritsu. Esta coleção de 30 volumes inclui as biografias dos monges da dinastia Liang (502–557) até o início da dinastia Tang (618–907) (Nota 1 em Em DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki.)

[6] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[7] LOORI, John D. Dropping Off Body and Mind. Darma Discourse. Koans of the Way of Reality, Case 108. Master Dogen’s Enlightenment. Disponível em: http://www.mro.org/mr/archive/21-1/.

[8] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[9] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).