Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (6) – O que Mestre Dogen encontrou na China

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

6 – O que Mestre Dogen encontrou na China

Decisão tomada e sem tempo a perder, Mestre Myozen e alguns alunos desembarcaram na China. Na realidade, possivelmente por motivos burocráticos, Mestre Dogen permaneceu no navio por três meses, enquanto Mestre Myozen seguiu seu caminho até o Monte Tientung, onde seu antigo professor Eisai havia sido treinado. Ficou ali por três anos até sua morte e suas cinzas foram levadas de volta para o Japão por Mestre Dogen.

Após sair do navio, em suas várias visitas a monastérios chineses, Mestre Dogen desencantou-se com a situação de dificuldade e declínio do Budismo chinês, inclusive da linhagem Rinzai, cujos mestres passaram a se envolver na política, fazendo com que os centros de prática se desvirtuassem em centros da vida social e política[1].

Disse ele:

“Embora haja na China um grande número daqueles que professam a si mesmos como descendentes dos Budas e dos patriarcas, poucos são os que estudam a verdade e poucos os que a ensinam (…)”[2].

Foi quando, ainda desiludido por não encontrar um professor autêntico e prestes a voltar para o Japão, ouviu notícias de um velho mestre que assumira a abadia do monastério de Tientung que ele já havia visitado no inicio da viagem: Tendo Nyojo (Rujing, 1163-1228).

Ao terem contato, Mestre Dogen foi imediatamente tomado pela sabedoria, integridade e disciplina de prática de Mestre Tendo[3].  Tornou-se seu discípulo e com ele praticou por dois anos e meio, recebendo a transmissão do darma ao final do treinamento e retornando para o Japão no ano de 1227.

Tendo Nyojo foi um dos poucos mestres da linhagem Soto (Ts’ao Tung, em chinês) a liderar um importante monastério tradicionalmente ligado à linhagem Rinzai (Lin Ji). Era um mestre gentilmente rigoroso. Simples em hábitos, dieta e vestes, e imune aos atrativos de reconhecimento da corte. Era, acima de tudo, firme em sua defesa  do zazen[4].

Conta Mestre Dogen que, em uma de suas palestras formais, Mestre Tendo disse:

“Eu estou velho. Deveria ter me aposentado do mosteiro e me mudado para um eremitério para cuidar de mim mesmo em minha velhice. No entanto, eu sou o abade e seu professor, cujo dever é quebrar as ilusões de cada um de vocês e transmitir o Caminho; portanto, eu às vezes uso uma linguagem dura para repreendê-los, ou bato em vocês com o bastão de bambu. Eu me arrependo de ter que fazer isso. Contudo, esta é a maneira de fazer com que o Darma de Buda floresça. Irmãos, por favor, tenham compaixão de mim e perdoem-me pelos meus atos”[5].

Mestre Dogen conta ainda que, ao ouvir essas palavras, seus discípulos derramaram lágrimas, cientes de que “somente com tal espírito se pode ensinar e propagar o darma”.      

Tal ‘espírito’ a que Mestre Dogen se referia permeava todas as ações de Mestre Tendo e o colocava para além das divisões sectárias do Budismo. Ele aspirava por um Budismo aberto e universalizante e não gostava nem mesmo de nomear sua prática como sendo Zen/Ch’an. Seu objetivo era aprofundar o Darma[6].

Para ele, o Budismo “não devia reverenciar nada daquilo que sinalizasse glória e poderes mundanos; devia, sim, contentar-se com a virtude da pobreza e do viver na profunda paz das montanhas. O Darma deveria ser buscado para o bem do Darma[7].

“Presunção, discriminação, imaginação, intelecto, compreensão humana e assim por diante não tem nada a ver com o Budismo quando estudando o Zen. Muitos [que], assim como crianças, brincam com estas coisas desde o nascimento, acordem para o Budismo agora. Acima de tudo evite presunção e discriminação: reflita sobre isto. O caminho de penetrar o portal é conhecido apenas pelos Mestres que obtiveram este Darma. Não pode ser alcançado pelos que apenas estudam textos”[8].

No momento em que encontrou um autêntico mestre, um Mestre Desperto, Mestre Dogen pôde encontrar a si mesmo. Suas angústias e dúvidas cessaram a partir do momento em que acessou uma esfera de entendimento para além das teorizações e conceitos, que sempre podem ser contraditos. O mundo dividido em partes, divisões, partidos, terremotos, guerras e crenças, cedeu espaço àquilo que não é quebrado, que é uno – a “unidade do ser” mencionada por Mestre Eisai.

Mais do que resolver paradoxos teóricos, a relação com o Mestre e seu método original de treinamento e orientação permite a transmissão direta, mente a mente, do “olho do Darma que é puro e límpido, a sublime mente de nirvana, a realidade que é sem forma, a autêntica verdade que é sutil”.

A sabedoria do Zen está corporificada na pessoa de um Mestre. Sem ele, o passado do Zen é sem vida.

Nas palavras de um praticante contemporâneo:

“Como música aprisionada em um disco que precisa de energia elétrica e um aparelho de reprodução para que ela viva, o coração mente de Buda, sepultado nos sutras, precisa de uma força viva na pessoa de um Roshi (Mestre) iluminado para recriá-lo” [9].

O Mestre é o responsável por encontrar meios para que esta música seja ouvida pelos alunos. Dos inúmeros expedientes de que dispõe, o que permanece constante através dos séculos como o método mais direto para adentrar o Caminho é o zazen. 

“A partir do momento em que um discípulo vem a encontrar face a face aquele que será seu amigo espiritual e conhecido professor, não há necessidade do discípulo oferecer incenso, fazer prostrações, cantar os nomes dos Budas, realizar práticas ascéticas e penitências ou recitar as escrituras: o Mestre apenas faz com o discípulo sente em pura meditação até que ele deixe seu corpo e mente caírem”[10].

Diz ainda Mestre Dogen:

Depois de ouvir as instruções de meu professor sobre a verdade da importância do zazen, pratiquei o zazen dia e noite. Quando os outros monásticos abandonavam o zazen temporariamente em momentos de calor ou frio extremos por medo de ficarem doentes, pensava comigo mesmo, devo ainda dedicar-me ao zazen, mesmo ao ponto de morte pelo ataque de alguma doença. Se eu não pratico o zazen, mesmo sem doença, de que serve cuidar do meu corpo? (…) Pensando assim continuamente, sentei-me em zazen resolutamente dia e noite, e nenhuma doença adveio”[11].

O zazen que Mestre Dogen encontrou na China, na pessoa de Mestre Tendo Nyojo, foi um zazen diferente daquele que resolve koans ou conta respirações. Ali ele conheceu e experenciou o Shikantaza – na definição de Yasutani Roshi, “um estado mais elevado da consciência concentrada, no qual alguém não está tenso, apressado e nem, certamente, negligente. É a mente de alguém que enfrenta a morte[12].

Zazen não é apenas um sentar qualquer. É um sentar fundamentado na fé inabalável de que sentar-se como sentaram os ancestrais, com a mente vazia de todos os conceitos, crenças e pontos de vista, é a atualização e o desabrochar da mente Bodhi intrinsecamente iluminada com que todos somos dotados[13].

E esta fé é o fator sem o qual não há iluminação. Fé como um compromisso interior e sincero com a vida espiritual, uma vez que ela exige esforço resoluto e aplicação da vontade, empenho, energia, iniciativa. Energia para superar-se, para dominar a própria mente e não se entregar[14]. Ou seja, a fé é um pré-requisito para a iluminação.

“Nosso grande Mestre Xaquiamuni só conseguiu alcançar o ensinamento que prevalece no mundo atual após se submeter a severo treinamento por incontáveis eons. Considerando-se quão dedicado foi o fundador do Budismo, podem os seus descendentes querer fazer menos do que ele? Aqueles que buscam o Caminho não devem procurar por uma prática fácil. Procedendo assim, vocês jamais serão capazes de alcançar o mundo verdadeiro da iluminação ou de encontrar a sala do tesouro. Até mesmo o mais talentoso dos antigos ancestrais afirmou que o Caminho é difícil de praticar. Você deveria se dar conta do quanto o Budismo é imenso e profundo. Se o Caminho fosse, originalmente, tão fácil de praticar e entender, esses primeiros e talentosos ancestrais não teriam chamado a atenção, exaustivamente, para suas dificuldades. As pessoas de hoje, quando comparadas aos antigos ancestrais, não chegam nem a um único fio de cabelo em relação a um rebanho de nove vacas! Isto quer dizer que, mesmo se essas pessoas modernas, que não possuem nem habilidade nem sabedoria, se esforçassem ao extremo, a sua prática, imaginada como difícil, ainda assim seria incomparável àquela dos primeiros ancestrais”[15].

Eis a verdadeira natureza de nosso Voto.


[1] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen budista. PPCIR-UFJF. Disponível em https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-diversos/791-a-espiritualidade-zen-budista.

[2] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[3] Citado em LOORI, John D. Dropping Off Body and Mind. Darma Discourse. Koans of the Way of Reality, Case 108. Master Dogen’s Enlightenment. Disponível em: http://www.mro.org/mr/archive/21-1/.

[4] DHARMANET. The story of Zen. Disponível em: https://dharmanet.org/coursesM/27/zenstory27a.htm

[5] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[6] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen-budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-725, jul.l/set 2012.

[7] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen-budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-725, jul.l/set 2012.

[8] DOGEN, E. Gakudo Yojinshu – Guia para a prática do Caminho. Disponível em:

https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-tradicionais/107-gakudo-yojinshu-guia-para-a-pratica-do-caminho.

[9] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia.

[10] DOGEN, E. Bendowa. A Discourse on Doing One’s Utmost in Practicing the Way of the Buddhas in Shobogenzo. The treasure House of the Eye of the True Teaching. A Trainee’s Translation of Great Master Dogen’s Spiritual Masterpiece. Rev. Hubert Nearman, O.B.C., translator. Shasta Abbey Mount Shasta, California. First Edition—2007.

[11] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[12] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia.

[13] KAPLEAU, P. Os três pilares do Zen. Belo Horizonte: Itatiaia.

[14] TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade Zen-budista. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-725, jul.l/set 2012.

[15] DOGEN, E. Gakudo Yojinshu – Guia para a prática do Caminho. Disponível em:

https://www.monjacoen.com.br/textos/textos-tradicionais/107-gakudo-yojinshu-guia-para-a-pratica-do-caminho.

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).

Textos e Sutras

> Shobogenzo Zuimonki (36) – Livro 2 Parte 14

(…) Portanto, em um mundo tão imprevisível, é extremamente tolo perder tempo se preocupando com as várias maneiras de ganhar a vida de modo a adiar a própria morte, incerta tal como ela é; para não mencionar maquinar o mal contra os outros. Precisamente porque isso é realidade, o Buda pregou isso a todos os seres vivos, os ancestrais ensinaram somente esta verdade em seus sermões e escritos. Em meus discursos formais e palestras também, eu enfatizo que a impermanência é rápida; vida-morte é a grande questão. Reflita sobre esta realidade mais e mais, em seu coração, sem esquecê-la e sem perder um único momento. Submeta toda sua mente à prática do Caminho. Lembre-se que você está vivo apenas hoje neste momento. Além disso [a prática do Caminho] é verdadeiramente simples. Você não precisa discutir se você é superior ou inferior, brilhante ou tolo.

LIVRO 2

2-14

Certa vez, um aluno perguntou:

“Embora muitos anos tenham se passado desde o início de minha aspiração a aprender o Caminho, eu ainda não tive nenhuma realização. Muitos dos professores antigos disseram que o Caminho não depende de inteligência nem de sagacidade. Portanto, não penso que devemos nos rebaixar por causa de nossa capacidade inferior. Há algo sobre isso que tenha sido transmitido pela tradição, e que eu deveria ter em mente?”

Dogen instruiu:

            “Você está correto sobre não contar com a inteligência, o talento, a esperteza ou a sagacidade ao aprender o Caminho. Ainda assim, é errado encorajar enganosamente uma pessoa para que ela se torne cega, surda ou ignorante. Uma vez que estudar o Caminho não requer ter um amplo conhecimento e nem habilidades altamente talentosas, você não deve desdenhar ninguém por conta da capacidade inferior dessa pessoa. A verdadeira prática do Caminho deve ser simples. No entanto, mesmo nos monastérios da grande China Song, há apenas uma ou duas pessoas entre centenas ou milhares de praticantes que entenderam o darma e obtiveram o Caminho na assembleia de apenas um professor. Portanto, devem existir coisas transmitidas que deveríamos ter em mente.

            Acredito nisto. Depende apenas de a aspiração de alguém ser firmemente determinada ou não. Uma pessoa que desperta a verdadeira aspiração e estuda tão arduamente quanto sua capacidade permite, não falhará em obter [o Caminho]. Temos que ser cuidadosos para nos concentrar e diretamente levar adiante a seguinte prática: antes de qualquer coisa, apenas mantenha a aspiração de sinceramente buscar [o Caminho]. Por exemplo, uma pessoa que deseja roubar um tesouro precioso, ou vencer um poderoso inimigo, ou ganhar uma mulher bonita de alta nobreza irá constantemente buscar uma oportunidade de concluir estas tarefas em qualquer situação ou ocasião, apesar das coisas estarem mudando, uma vez que sua mente está sempre ocupada com este desejo. Se este desejo é tão entusiástico assim, a pessoa não irá falhar em executá-lo.

            Do mesmo modo, se a aspiração de buscar o Caminho for séria o suficiente quando você pratica shikantaza (apenas sentar), estuda os koans ou encontra seu professor, embora o objetivo seja elevado, você alcançará esta marca e, embora seja profunda, você a escolherá. Sem despertar tal aspiração, como poderá você completar a grande questão do Caminho de Buda no qual o samsara da vida-morte é extirpado em um único momento? Apenas se você tiver uma mente desinteressada de uma inteligência inferior ou de faculdades tolas, de ignorância ou estupidez, é que você certamente obterá iluminação.

            Em seguida, para despertar tal aspiração, pense profundamente sobre a impermanência do mundo. Não é uma questão de meditar usando algum método provisório de contemplação. Não é uma questão de fabricar em nossas cabeças aquilo que não existe de fato. Impermanência é verdadeiramente a realidade bem na frente dos nossos olhos. Não precisamos esperar pelo ensinamento de alguém, por alguma prova vinda de alguma passagem das escrituras, nem por algum princípio. Nascida pela manhã e morta à noite, uma pessoa que vimos ontem não está mais aqui hoje – esses são os fatos que vemos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos. Isso é o que vemos e ouvimos sobre os outros. Aplicando isso aos nossos próprios corpos e pensando sobre a realidade (de todas as coisas), embora tenhamos expectativa de viver por setenta ou oitenta anos, morremos quando temos que morrer.

            Durante nossa vida, embora possamos ver a realidade da tristeza, prazer, amor de nossos familiares e ódio de nossos inimigos, estes não são assuntos valorosos. Poderíamos passar nosso tempo abrindo mão deles. Deveríamos apenas acreditar no Caminho de Buda e buscar a verdadeira alegria do Nirvana. Ainda mais para aqueles com idade avançada cujas vidas já passaram da metade. Quantos anos ainda restam? Como podemos relaxar em nosso estudo do Caminho? Isso ainda não está suficientemente perto da realidade. Em verdade, apenas hoje ou só neste momento é que podemos, então, pensar sobre assuntos mundanos ou sobre o Caminho de Buda. Hoje a noite ou amanhã podemos contrair uma doença grave, ou ter que aguentar uma dor terrível que nos incapacite de distinguir leste de oeste. Ou podemos ser mortos, de repente, por algum demônio, encontrar problemas com salteadores, ou ser mortos por algum inimigo. Tudo é verdadeiramente incerto.

            Portanto, em um mundo tão imprevisível, é extremamente tolo perder tempo se preocupando com as várias maneiras de ganhar a vida de modo a adiar a própria morte, incerta tal como ela é; para não mencionar maquinar o mal contra os outros.

            Precisamente porque isso é realidade, o Buda pregou isso a todos os seres vivos, os ancestrais ensinaram somente esta verdade em seus sermões e escritos. Em meus discursos formais e palestras também, eu enfatizo que a impermanência é rápida; vida-morte é a grande questão. Reflita sobre esta realidade mais e mais, em seu coração, sem esquecê-la e sem perder um único momento. Submeta toda sua mente à prática do Caminho. Lembre-se que você está vivo apenas hoje neste momento. Além disso [a prática do Caminho] é verdadeiramente simples. Você não precisa discutir se você é superior ou inferior, brilhante ou tolo.”

Textos e Sutras

> História da nossa linhagem (5) – De Kennin Ji para a China – refazendo os caminhos de Mestre Eisai

O Zen Budismo tem suas origens nos ensinamentos de Bodidarma, o vigésimo oitavo Mestre Ancestral da linhagem que se inicia em Xaquiamuni Buda. Emigrando do sub-continente indiano, Bodidarma traz para a China do séc. VI d.C. um olhar bastante particular em relação aos ensinamentos de Buda. Seu feito mais conhecido é ter-se sentado de frente para a parede de uma caverna por nove anos ininterruptos. Os ensinamentos de Bodidarma dão origem a novas linhagens de prática, que depois de muito tempo terminam por influenciar decisivamente o surgimento do Zen no Japão do séc. XII. A linhagem Soto Shu, fundada por Eihei Dogen Zenjji Sama, a qual pertencemos, é uma destas.

5 – De Kennin Ji para a China – refazendo os caminhos de Mestre Eisai

Mestre Eisai faleceu meses antes de Mestre Dogen se fixar em Kennin Ji, e por isso seu treinamento ficou a cargo de Mestre Myozen.

Disse dele Mestre Dogen:

“Mestre Myozen era o mais excelente dos alunos de Mestre Eisai, e ele recebeu os ensinamentos da verdade de Buda diretamente dele. Nenhum dos outros estudantes se comparavam a ele” [1].

Mestre Dogen foi aluno de Mestre Myozen por nove anos, até sua morte. Foi por ele ordenado como um monge Zen, recebeu o manto e a tigela simbólicos da tradição Zen, obteve os ensinamentos secretos dos rituais esotéricos, estudou o cânone dos regulamentos monásticos e começou a aprender sobre a linhagem Rinzai. Depois de alguns anos, recebeu a transmissão do Rinzai Zen e, com 24 anos, sua formação budista, teórica e prática, era muito ampla[2]. Mas algo ainda faltava.

Seguindo os passos de Mestre Eisai, Mestre Dogen acompanhou Mestre Myozen em sua ida à China. Ele conta que, já durante os preparativos para a viagem à China, Mestre Myozen recebeu a notícia de que seu antigo professor Tendai estava morrendo. Ele requisitava sua presença e, em consequência, o adiamento da viagem. Incerto sobre o caminho a seguir, Mestre Myozen consultou seus alunos: “Devo ir à China para aprofundar minha prática Zen ou devo honrar o débito com meu antigo professor?”

Seus alunos foram unânimes em afirmar que a melhor decisão seria adiar a viagem. Mestre Dogen, por sua vez, lançou-lhe uma reflexão instigante dizendo que, se ele considerava que sua realização do Darma de Buda era satisfatória tal como se encontrava naquele momento, ele deveria ficar.

Dito isso, Mestre Myozen ponderou:

            “Todos vocês concordam que eu deveria ficar. Minha resolução é diferente. Mesmo que eu adie minha viagem por enquanto, aquele cuja morte é certa, irá morrer. Minha permanência aqui não irá ajudar a prolongar sua vida. Mesmo que eu fique para cuidar dele, sua dor não irá cessar. Também, não será possível escapar da vida-morte porque eu cuidei dele antes de sua morte. Isso seria apenas para cumprir seu desejo e confortar seus sentimentos por um tempo. Seria inteiramente inútil no tocante a adquirir emancipação e alcançar o Caminho. Permitir erroneamente que ele dificulte minha aspiração para buscar o Darma seria causa de más ações. Entretanto, se eu levar adiante minha aspiração de ir para a China para buscar o Darma, e alcançar um pouco de iluminação, embora isso vá contra os sentimentos deludidos de uma pessoa, para muitas outras esta seria a condição para encontrar o Caminho. Como o mérito é maior, isso irá ajudar a devolver o débito de gratidão que tenho com meu professor (…).

Desperdiçar em vão um tempo que é facilmente perdido, por consideração a uma pessoa, não estaria de acordo com o desejo de Buda. Portanto, eu firmemente decido ir para a China agora”[3].

Para Mestre Dogen, tal decisão foi uma clara demonstração da mente bodhi. Ele mais tarde diria a seus próprios alunos que não se envolvessem em assuntos inúteis e perdessem tempo, usando seus familiares ou professores como desculpa ou justificativa para adiarem ou desistirem de sua busca espiritual.  “Não percam tempo”.

            “Vidamorte é de suprema importância. Tempo rapidamente se esvai, e oportunidade se perde. Cada um de nós deve esforçar-se por despertar. Cuidado. Não desperdice esta vida”[4].


[1] DOGEN, E. Bendowa. A Discourse on Doing One’s Utmost in Practicing the Way of the Buddhas in Shobogenzo. The treasure House of the Eye of the True Teaching. A Trainee’s Translation of Great Master Dogen’s Spiritual Masterpiece. Rev. Hubert Nearman, O.B.C., translator. Shasta Abbey Mount Shasta, California. First Edition—2007.

[2] LOORI, John D. Dropping Off Body and Mind. Darma Discourse. Koans of the Way of Reality, Case 108. Master Dogen’s Enlightenment. Disponível em: http://www.mro.org/mr/archive/21-1/.

[3] DOGEN, E. Shobogenzo Zuimonki. Disponível em: https://terebess.hu/zen/dogen/Shobogenzo-Zuimonki.pdf

[4] Poema lido depois do último período de zazen.

(Versão adaptada do texto “O que significa ser Zen Budista no Brasil”de Mui Leticia R. Sato).